Parkinson e recreação

por João Estróia Vieira,    11 Maio, 2020
Parkinson e recreação
Ilustração de Simone Roberto
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O título trata-se de uma clara e óbvia alusão à série Parks and Recreation, onde uma burocrata (interpretada por Amy Poehler) quer transformar uma construção abandonada num parque comunitário mas que, ao longo da série, vai lidando com várias pessoas (internas e externas ao seu local de trabalho) e burocracias que a impedem de o fazer. Neste texto, Parkinson refere-se não à doença mas à Lei de Parkinson, publicada por Cyril Northcote Parkinson num artigo na revista The Economist em 1955 e que refere que “o trabalho expande-se de forma a preencher o tempo disponível para a sua realização”. A Lei, que deu também origem a várias derivativas (até na computação), deve-se, segundo o autor, a factores que não importa aqui particularmente esmiuçar. Importa sim, referir que a lei tem várias aplicações nas áreas do conhecimento e gestão de pessoas, nomeadamente na gestão de projectos ou, na área da Educação, no delineamento de datas para entregas de trabalhos ou prazos para estudo de e entre exames. Convertido isto, a Lei refere que sempre que há um prazo terminamos o trabalho o mais próximo possível da sua data limite de entrega ou até já fora do mesmo (quantos de nós não chegaram a enviar um ficheiro corrompido ao professor para que quando ele desse conta já tivéssemos o trabalho efectivamente feito? Disse-me um amigo…) mesmo que antes tenhamos estado sem fazer nada.

Numa altura em que passamos a trabalhar mais por casa, muitos de nós debatem-se com isso mesmo. Ainda que habitualmente estejamos habituados a fazer o mesmo trabalho, com os mesmos prazos de entrega de sempre, há algo que nos faz prolongar essa tarefa e pior, que faz com que acabemos bem mais tarde ou a levemos para alturas do dia em que habitualmente já tínhamos saído do trabalho com a tarefa completa e estávamos já descansados em casa. É a chamada procrastinação.

Dirá o leitor – e bem, pois eu faria o mesmo –  que eu me trato apenas daquilo a que se chama comummente de “preguiçoso”. Nada mais errado, e passarei desde já a refutá-lo de forma irrepreensível. Primeiro, se fosse de facto preguiçoso, nunca o admitiria num texto que me daria o mínimo de trabalho. Seria desnecessário e desadequado à categoria profissional de um real “preguiçoso”. Simplesmente o diria, ou nem diria de tão preguiçoso que porventura podia ser. Segundo, porque o trabalho é feito, mas apenas a um ritmo não satisfatório – para mim, que como já foi referido, não sou preguiçoso-, e é disso que se trata a Lei de Parkinson. É, se quiserem, uma espécie de “carpe diem” dos trabalhadores vagarosos, na medida em que o trabalho é “aproveitado” (reparem na subtileza para a justificação do “carpe diem”) pelo máximo de tempo possível. Terceiro, porque poderão perguntar à minha entidade patronal (coisa que espero que não façam, por favor), pois no local de trabalho até apresento um rendimento que diria ser bastante assinalável, e digo-o sem qualquer ponta de vaidade.

Sou, apenas, uma entre muitas pessoas que hoje em dia se debate com esta novidade do trabalho remoto (e não teletrabalho, porque o mesmo não me é transmitido na RTP Memória, infelizmente) e que em casa, por ter ali por perto uma série de escapes bem à mão, sente que podia e devia ter mais disciplina. Sim, sou daqueles para quem a leitura é por vezes interrompida por uma parede que se apresenta estranhamente bela e insinuosa, ela e a sua pintura totalmente em branco que é apreciada pela 2985618ª vez. Ou para quem aquela mosca, que está noutra divisão e que acabou de poisar numa cómoda, está mesmo a tentar estragar a sessão de leitura (a velhaca!).

Todos temos índices de atenção mais ou menos elevados, mas não é essa a questão. A questão é que culturalmente, por força do hábito, sempre estivemos em locais ditos “de trabalho”. Para a maioria de nós, esse local nunca se confundiu com o mesmo onde geralmente comemos, vemos séries, filmes, lemos um livro ou praticamos a arte do “scroll infinito” pelas redes sociais. Não havia essa hipótese. Se nos tínhamos deslocado através de um ou mais transportes até ao local de trabalho, demorado o tempo que fosse depois de sair de casa e já estávamos num ambiente criado precisamente para trabalhar, com colegas com quem tenhamos muita ou pouca confiança pessoal, o “chip” já tinha obrigatoriamente mudado. Inclusive, muitos de nós enquanto estudantes, se deslocavam para a biblioteca para estudar, apesar de termos condições para o fazer em casa. Agora, para alguns de nós apenas basta sair da cama e ligar o computador. O local de trabalho passa a ser o próprio quarto, a nossa sala ou um escritório onde sempre tivemos hábitos completamente diferentes.

Tudo isto é puramente uma batalha interna, é certo, mas não é por ser uma batalha só nossa que deixa de ser comum a tantos milhares de pessoas. Saber “desligar” sempre foi uma necessidade mas agora, mais que nunca para tantos nós, há que o saber fazer. Desligar o aplicativo do trabalho ou desligar o telemóvel do trabalho (ou simplesmente colocá-lo em silêncio) surgem como acções imperativas na criação de uma sustentável transição entre o local de trabalho para casa, sob pena de que esta perca o sentido de lar. Mas não é só nestas acções aparentemente de senso comum. A própria hora (ou meia hora) de almoço, que pode e deve ser tranquila o máximo possível, pode agora ser facilmente corrompida por uma série de dinâmicas novas. Cada qual terá a sua vida, as suas idiossincrasias e a sua gestão pessoal do tempo e espaço num ambiente familiar que difere de pessoa para pessoa. Mas também por isso se torna importante que saibamos separar todas essas componentes na devida altura, ainda que exija um aparente esforço para que evitemos situações de ansiedade e stress.

É necessário criarmos novos hábitos, adaptarmo-nos. O lar, que víamos como “porto seguro” e local de tranquilidade, pode e deve continuar a sê-lo, mas caberá a cada um de nós preservar essa diferença importante entre o que deve ser feito no horário normal de trabalho, o que deve ficar para amanhã e o espaço para a tal recreação (juro que não estou a colocar esta palavra aqui apenas para a validar ter colocado no título), crescimento pessoal e descanso. Saibam “desligar”. Forcem-no.

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