Paraíso

por Frederico Lourenço,    4 Novembro, 2018
Paraíso
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Ficcionista, ensaísta, poeta, tradutor, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu a Ilíada e a Odisseia de Homero.

Um distinto catedrático da Universidade de Coimbra (infelizmente já falecido) disse-me uma vez que o paraíso não será paraíso se lá faltar cozido à portuguesa. Por seu lado, a voz que descreve a bem-aventurança depois da morte no final da 4ª Sinfonia de Mahler garante-nos a abundância de feijão verde no Céu. E eu, pela minha parte, não poderei levar a sério um paraíso onde não encontre, no jardim de São Pedro, a roseira “Fantin Latour”.

Ora tratar de um roseiral repleto de roseiras “Fantin Latour” seria, para mim, um bom projeto de vida pós-morte, mas a probabilidade de que a vida depois da morte nisso consista é bastante remota. No entanto, é interessante como, na nossa cultura, as flores são parte integrante da projeção fantasiosa da bem-aventurança no Além, já desde o poeta grego Píndaro, que no século V antes de Cristo descreveu o local paradisíaco onde alguns viverão essa felicidade pós-morte como cheio de rosas – rosas, porém, que florescem espontaneamente sem os cuidados angélicos do já morto jardineiro Frederico Lourenço. Píndaro descreve esse local como tendo luz eterna, onde os bem-aventurados passam o tempo a jogar xadrez e a tocar instrumentos de corda beliscada, sem esquecerem os “exercícios gímnicos” a que estes atletas de corpos perfeitos se tinham dedicado em vida. Portanto é bom saber que, no paraíso, haverá cravos celestiais que nunca desafinam para eu tocar; e ginásios onde possa prosseguir os meus treinos com barras e halteres.

Claro que outras projeções fantasiosas do paraíso que vieram depois nos confiscam o ginásio – decerto por se ter vindo a perceber a falta de lógica patente na imaginação de uma realidade além-morte em que as coisas do corpo ainda façam algum sentido. Dante descreve-nos um paraíso sem jogos de xadrez e sem cozido à portuguesa; talvez por isso, muitos de nós, leitores da “Divina Comédia”, nunca nos tenhamos entusiasmado especialmente com a terceira parte da obra. O Inferno de Dante é dantescamente horrível, mas a forma como nos é apresentado em verso leva-nos a achá-lo bem interessante. Se houve aulas que detestei dar na minha vida de professor foram algumas aulas que dei em Coimbra sobre o Paraíso da “Divina Comédia”. Nunca esquecerei a expressão de tédio estampada nas caras dos alunos, que, apesar de tudo, até tinham vibrado alguma coisa com o Inferno e o Purgatório.

O problema de descrever o paraíso reside na pobreza das palavras que, como já escreveu Platão, não se prestam lá muito para cantar o “lugar supraceleste”. A música consegue chegar bem mais longe. Quando ouvimos o “Benedictus” da “Missa Solemnis” de Beethoven, as palavras são mais ou menos indiferentes, pois o que conta é a sensação que a música dá de termos chegado, de facto, ao paraíso, que nos é mostrado e cartografado por um violino solo. O mesmo poderá dizer-se do 3º andamento da 9ª Sinfonia de Beethoven, do andamento final da 3ª Sinfonia de Mahler, da Allemande da 4ª Partita para cravo de Bach, da “Ave Maris Stella” do “Vespro della Beata Vergine” de Monteverdi. Estas obras musicais dificultam a vida a agnósticos e ateus, porque a genialidade da sua concretização enquanto prova da existência do Além torna-as supremamente convincentes. No momento em que oiço qualquer uma delas, acredito piamente que depois da vida virá o Céu.

No entanto, são obras que levantam uma pergunta subversiva: o paraíso, afinal, não será aqui na terra? Que garantia tenho eu de que o paraíso me proporcione uma bem-aventurança mais perfeita do que a música de Beethoven e Bach? O mundo dos vivos, onde floresce a roseira “Fantin Latour”, não tem de ser à partida bastante paradisíaco? Um mundo onde há longos dias de praia e desafiantes horas passadas no ginásio; onde há a excitação de jantares de namorados e a felicidade de pessoas a celebrar as suas bodas de ouro; onde há CDs que nos reproduzem a voz da morta Elisabeth Schwarzkopf e transmissões diretas do Royal Ballet de Londres no cinema ao lado de nossa casa; onde há filhos que vos comunicam que eles próprios vão ser pais e onde catedráticos da Universidade de Coimbra podem degustar as suas fartas travessas de cozido à portuguesa. Não será esta a configuração do paraíso?

Claro que o mundo dos vivos tem o problema de, em paralelo com o paraíso a termo certo que proporciona a algumas pessoas, ser também o local onde estão o inferno e o purgatório. E nada é mais trágico do que pensarmos nos seres humanos em número incontável por esse mundo fora cuja vida só lhes proporcionou a experiência do inferno. É justo que a ideologia cristã reserve para esses irmãos o primeiro lugar no paraíso do mundo que há de vir. Mais justo ainda é tentarmos, a título pessoal, espalhar um pouco de paraíso à nossa volta e continuarmos, enquanto cidadãos, a chatear quem de direito, para que, cá em baixo, a experiência do paraíso seja cada vez mais equitativa.

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