Outra vez Roma

por José Navarro de Andrade,    1 Março, 2019
Outra vez Roma
“Roma”, de Alfonso Cuarón / Fotografia de Carlos Somonte
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Estivéssemos na Roma Antiga e a Grande Noite dos Óscars de 2019 seria o equivalente ao desfile triunfal do general conquistador ao longo do fórum até ao templo de Júpiter, aclamado em apoteose pela multidão e arrastando atrás de si os despojos. Para que não se deslumbrasse, o escravo que suspendia a coroa de louros sobre a sua cabeça segredava-lhe: “memento mori” (“lembra-te que és mortal”).

Que vitória se celebrou na passada noite de 24? A da admissão da Netflix na MPAA ocupando o assento deixado livre pela Fox entretanto fundida com a Disney. Para que o simbolismo do acto não passasse em claro esta nomeação foi anunciada a 22 de Janeiro, dia em que se divulgaram os candidatos aos Óscars entre os quais, pela primeira vez, constava uma produção da Netflix – “Roma”. Em terra de filmes nenhuma coincidência é deixada ao acaso.

A Motion Pictures Association of America representa os interesses dos grandes estúdios que se supõe coincidentes com os interesses da indústria em geral. Luta infatigavelmente desde 1922 junto dos legisladores para que nada prejudique e muito incentive a economia do cinema. Em resumo: faz lobby em Washington. Um dos seus presidentes mais famosos, dinâmicos e determinantes foi Jack Valenti que entre 1966 e 2004 conseguiu garantir, por entre ventos e marés extremamente adversos, não só a sobrevivência como o crescimento da produção cinematográfica. Foi ele o homem que tomou tantos pequenos-almoços quantos os necessários com o Presidente Clinton até dar cabo das veleidades da Microsoft em subordinar a indústria de cinema à economia das então apelidadas de “novas tecnologias.”

O espectador menos distraído ou que chega a horas ao cinema deve ter reparado que à cabeça dos filmes, depois de surgido o logotipo de uma conhecida “major”, sucedem-se nomes de empresas de produção pouco memoráveis. Disney, Universal, Paramount, Warner, Sony (ex-Columbia) concentram sobretudo o seu investimento na distribuição, ou seja, na parte comercial da fileira, e entregam os afazeres da produção propriamente dita a estas companhias.

Toda esta constelação tem como clientes principais as companhias de exibição, ou seja, as donas de salas de cinema. A seguir vêm as televisões, nos seus diversos formatos. A maior destas cadeias é a AMC que “por acaso” é desde 2012 propriedade de um poderoso grupo chinês, o Dalian Wanda Group. Um certo mau-estar, portanto.

Entra então em cena a Netflix.

Até à chegada deste serviço a hecatombe da indústria musical acontecida no início do século gerou uma forte e quase irremovível suspeita no cinema em relação a tudo que tivesse a ver com a internet. Pior do que a pirataria foi a cultura que ela desenvolveu, a ideia de que a música ou o audiovisual são bens comuns, como o ar que se respira, cujo acesso e usufruto é um direito gratuito. Isto é tão tolo como achar que as costeletas aparecem no supermercado por milagre.

O percurso da Netflix foi tudo menos previsível como são sempre as grandes transformações. E, também como de costume, resultou de uma série infindável de decisões, umas circunstanciais outras estrategicamente audazes, à imagem das partículas postas a correr num acelerador até que da sua colisão deflagre matéria nova. Tal como as majors assim a Netflix foi acrescentando à sua actividade de distribuição o investimento na produção até atingir o ponto de não-retorno e de consolidação actual.

De início vista e combatida como concorrente, mesmo como intrometida, mal deu sinais de generosidade em relação aos produtores, a Netflix tornou-se um parceiro deveras interessante na fileira do cinema. Veio oferecer a produtores e distribuidores uma alternativa à exibição em sala, deu-lhes acesso a um mercado irresistivelmente crescente e inexplorado, a internet, introduzindo a lei a ordem no que era um faroeste. Os índios desta história são os canais de TV cabo pagos – a HBO, por exemplo – cujo público está a migrar para outras plataformas e as salas de cinema que embora ainda não sintam na bolsa – o ano de 2018 terá sido o mais rentável de sempre – já sentem na estratégia o efeito desta concorrência: menos filmes, mais bombásticos (e caros), para um público afuniladamente adolescente. Isto vai acabar mal…

Uma poltrona na MPAA, uma obra prestigiada por prémios e louvores dantes reservados ao circuito do cinema, um modelo de negócio radiante – o mundo não está a mudar, já mudou. E a arma fumegante foi encontrada na mão da Netflix.

Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização

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