Os filmes e o suspense de Alfred Hitchcock

por Lucas Brandão,    25 Outubro, 2020
Os filmes e o suspense de Alfred Hitchcock
Alfred Hitchcock / Wikimedia Commons
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Alfred Hitchcock não precisa de introduções. É o mestre do suspense, mesmo após já ter falecido há mais de 40 anos. A sua cinematografia eternizou-se sem limites. Por mais convencional que, aparentemente, se apresentasse, o inglês conseguiu sempre desvirtuar o óbvio e o pacífico em prol de uma sinistralidade que nem sempre se tornou assim tão clara. Realizou e participou (com as suas célebres aparições relâmpago) em mais de quarenta filmes de renome e de recheio de uma influência mais viva do que nunca, que projeta a alma do cinema como uma arte empolgada e investida no risco e na tensão.

(Sir) Alfred Joseph Hitchcock nasceu a 13 de agosto de 1899, tendo falecido aos 81 anos, a 29 de abril de 1980. Entre mais de quarenta nomeações para os Óscares e, delas, seis vitórias, Hitchcock marcou o seu caminho bem cedo, em Londres, desenhando intertítulos para o cinema e redigindo alguns textos para uma empresa de telégrafos. Seria esta ligação entre a escrita criativa e o cinema que o inspirariam a embarcar num estudo do cinema daquele início do século XX, em especial do expressionismo e do romantismo alemães, e a experimentar idealizar filmes. Assim, como realizador, só começou em 1925, com o filme mudo “The Pleasure Garden”.

Foi uma obra que fez, desde logo, antever alguns dos principais temas do seu cinema, nomeadamente o protagonismo assumido por uma mulher loira, que se apresenta em conflitualidade com as suas relações humanas mais próximas, desde familiares, amigos, amantes e até desconhecidos. Neste caso, são duas as protagonistas, trabalhando elas no Pleasure Garden, um palco de espetáculos. É uma adaptação de um livro do inglês Oliver Sandys, mas já faz a ponte para o seu futuro cinematográfico. De seguida, “The Lodger: A Story of the London Fog” (1927) é, também ele, mudo, mas já mais complexo. Uma adaptação do livro homónimo de Marie Belloc Lowndes, o filme retrata a perseguição de um assassino ao bom estilo de Jack, o Estripador.

De novo a presença denotada de personagens principais femininas e loiras, mas agora com um sentido mais narrativo, dando destaque à sua obsessão pelo mistério e pela necessidade de resolver o dilema do enredo. Este problem solving passa a ser uma constante no cinema de Hitchcock, que também faz entrever alguma ambiguidade em relação a tensões homossexuais entre personagens, assim como a intimidação perante as figuras de autoridade. Fotograficamente falando, Hitchcock inspira-se profundamente no expressionismo alemão, com o uso de ângulos de câmara pouco recorrentes e até estranhos, para além de potenciar a luz como forma de evocar e de exprimir o suspense do trama.

É uma tensão visual e sensorial que é herança do clima bélico que se viveu e que se viveria no futuro, um clima de absurdidade e de loucura. Porém, estavam dados os passos firmes para aquele que seria um dos géneros de filmes mais badalados deste então: o thriller, em especial o psicológico, que Hitchcock faria com regularidade. No final da década de 1920, chega “Blackmail” (1929, o primeiro já falado em toda a história do Reino Unido e da própria Europa). Adaptado da peça de Charles Bennett, a narrativa aborda uma mulher que é chantageada após assassinar um homem que a tentou violar. Era um passo importante para a sua reputação, que se tornaria ainda mais pronunciada pouco tempo depois, quando produziu “The 39 Steps” (1935), também a partir de uma obra, agora de John Buchan.

O enredo retrata um homem londrino que se depara com uma organização de espiões (39 Steps) que procurava roubar informação providencial vinda do Exército britânico e que se vê compelido a desmistificá-la e a denunciá-la. Porém, após ser acusado de assassinato de um outro espião, é obrigado a ir para a Escócia, de forma a limpar o seu cadastro. Esta fuga de um homem inocente seria um tema recorrente no futuro cinema do inglês, que o volta a incorporar, por exemplo, em “Saboteur” (1942). Para além disso, Hitchcock apresenta aqui o seu primeiro “MacGuffin”, que não é mais do que um detalhe ou um objeto que, apesar de passar despercebido ao espectador, se torna fundamental no desenvolvimento da história. No fundo, não é nada, mas um nada que se torna quase tudo. É um detalhe que o realizador começa a usar com frequência no futuro.

De novo uma personagem loira, sempre com um arquétipo muito particular: uma mulher fria, distante, excessivamente bem vestida, que tem o condão de hipnotizar o protagonista masculino e as suas vulnerabilidades. Porém, no decurso do enredo, a personagem acaba por denunciar as suas fragilidades e, de certo modo, tornar-se quase subserviente ao engenho do homem. Hitchcock também fazia questão de filmar as cenas decisivas em lugares de referência e de conhecimento geral, como monumentos, estações, pontes ou outros espaços públicos.

São detalhes que se tornam proeminentes e sempre presentes e que “The Lady Vanishes” (1938) também possui. Inspirado na obra “The Wheel Spins”, de Ethel Lina White, é um filme gravado durante uma viagem de comboio, em que uma jovem vê a sua companheira, uma senhora idosa, a desaparecer subitamente. Todo o enredo se torna em volta deste desaparecimento e da tentativa de a resgatar, envolvendo grande parte dos passageiros. Este seria o filme em que Hitchcock conquistaria Hollywood, abrindo as portas a um convite por parte do produtor norte-americano David O. Selznick para ir para o outro lado do Atlântico. O primeiro grande filme que fez, já na década de 1940, foi “Rebecca”, que lhe valeu os seus dois primeiros Óscares, o de melhor cinematografia e o de melhor filme. Baseado na obra com o mesmo nome de Daphne du Maurier, Hitchcock usa Laurence Olivier e Joan Fontaine como os protagonistas de um conto gótico, em que o mistério se adensa em torno da figura de Rebecca, que faleceu, e cujo marido relembra ao lado da sua nova esposa, assim como em relação à governanta da sua casa. O caráter gótico rodeia, assim, essa mulher que, apesar de tão referida e de tão presente, nunca aparece fisicamente.

Nesse mesmo ano, “Foreign Correspondent” é um novo filme de espionagem, onde um repórter norte-americano procura expor vários espiões antibritânicos, que lá estão para orquestrar uma conspiração pré-Segunda Guerra Mundial. Importante relembrar que esse conflito já ocorria nessa fase, só terminando em 1945. Dez guionistas juntaram-se para importar ideias da obra “Personal History”, um memorial de Vincent Sheean. No ano seguinte, um novo filme, agora “Suspicion”. Baseia-se no livro “Before the Fact”, de Francis Iles, e relata a história de uma mulher (Joan Fontaine) que foge com um galã (Cary Grant), que se apresenta como rico e bem-parecido e que não é mais do que uma fraude, suspeitando até de que é um assassino que a tenta matar. Por este filme, Fontaine arrecadaria o Óscar de melhor atriz. No entanto, tratar-se-ia do primeiro filme em que Hitchcock entrou em choque com o estúdio, que procurava salvaguardar a imagem de herói que Cary Grant possuía e que obrigou a alterações no final.

Dois anos depois, é lançado “Shadow of a Doubt”, onde uma jovem vai descobrindo o passado criminoso do seu tio, que havia matado em prol de obter dinheiro. Este seria, considerado pelo próprio realizador, o seu filme preferido. Em 1944, “Lifeboat” relata uma história que se passa numa pequena embarcação salva-vidas, onde a sua tripulação havia estado num navio que fora afundado por um submarino nazi. É um dos poucos filmes que não dispõe de música, fora a do próprio contexto do filme e a dos créditos. No ano seguinte, “Spellbound” traz Gregory Peck e Ingrid Bergman num enredo sobre um asilo e o seu diretor, que é desconstruído por uma psicanalista e cujos traumas e fobias acabam por ser reveladas. É uma adaptação do livro “The House of Dr. Edwardes”, de Hilary Saint George, e traz uma célebre cena que o pintor Salvador Dalí concebeu, onde se embarca pelos sonhos da personagem principal.

Já no ano de 1946, Cary Grant e Ingrid Bergman protagonizam “Notorious”, um novo filme com a espionagem como pano de fundo. Um agente norte-americano obriga uma mulher, que é nada mais do que a filha de um agente nazi, a ajudá-lo a infiltrar-se numa organização que se vinha formando no Brasil, aliando esses mesmos nazis, que tinham sido derrotados na Segunda Guerra Mundial. O choque entre a paixão e o compromisso acaba por se intrometer e por tornar o enredo mais complexo, em especial com o surgimento de uma terceira personagem, que acaba por dar o conforto que a mulher procura. É ela, em suma, a grande protagonista, que giza os movimentos das personagens e as suas próprias decisões.

A figura da maternidade também ganha, aqui, o primeiro grande destaque no cinema de Hitchcock, para a qual se deposita a fúria e a culpa acumuladas por essa terceira personagem, um dos líderes desse grupo. Outros temas fraturantes são a forma condenatória como os agentes norte-americanos são caraterizados, algo inusitado na altura, e o papel do álcool como um refúgio e como uma fonte de turbulência. É um filme que capta os próximos sinais cinematográficos do seu cinema, que se tornam tão cruciais e determinantes na caraterização do seu trabalho. A câmara flui ao encontro do estado mais íntimo das personagens, mostrando as suas fragilidades, ansiedades e inseguranças, para além de abrir as portas a filmagens quase intrusivas e indiscretas, para lá do visível a olho nu.

Na chegada da década de 1950, Hitchcock voltou aos seus grandes trabalhos: “Strangers on a Train” (1951), adaptação de um romance homónimo de Patricia Highsmith, em que dois estranhos que se conhecem num comboio fazem um pacto: um deles, o psicopata, tratava de assassinar aquele que o outro, um tenista, pretendia ver morto; em troca, o tenista devolvia-lhe o favor. As duas personagens acabam por ser os dois lados da mesma moeda, entre o desejo e a realidade, numa dualidade que é constante neste filme. A luz e a escuridão contrastam, assim, ao abrigo destas duas referências, onde o psicopata, numa vida caótica, está nessa escuridão, e o tenista, numa vida ordenada e regrada, está no lado da luz. Hitchcock também convenciona o lado esquerdo da tela para o mal e o direito para o bem, que tem, em si subjacente, uma mensagem política, numa altura em que as perseguições aos alegadamente ligados ao comunismo abundavam em solo norte-americano. A própria ambiguidade sexual está presente na personagem do psicopata, algo que não é incomum e que pode ser visto no filme “Rope” (1947).

Três anos depois, Hitchcock faria dois dos seus mais conhecidos trabalhos: o primeiro foi “Dial M for Murder”, onde Grace Kelly assume o grande protagonismo deste filme. É um dos primeiros filmes do realizador a cores, mas onde a escuridão não deixa de ser nota dominante. Assim, Kelly é uma mulher que está a ser infiel ao seu marido e este, em retaliação, decide gizar um plano para a assassinar, envolvendo um amigo pessoal. A seu lado, está “Rear Window”, com o regresso de Grace Kelly, agora fazendo parelha com James Stewart. Baseado num conto de Cornell Woolrich, um fotógrafo profissional vê-se confinado numa cadeira de rodas enquanto vislumbra, a partir da janela do seu apartamento, um eventual crime passional. Com a ajuda da sua namorada, procura decifrar o homicídio, num filme em que predomina a vertente voyeur, onde a personagem principal examina o que está a seu redor, incluindo uma dançarina, no seu espaço pessoal, que é admirada e perscrutada pelo fotógrafo. O olhar, o observar, o examinar é a linguagem mais audível neste filme, que está longe de ser introspetivo e que é, antes, uma curiosidade invasiva, muitas vezes mórbida e fanática, que perturba mais do que se limita a curiosidade.

Em 1958, sai para as salas um dos melhores filmes de sempre, de acordo com muita da crítica e das instituições cinematográficas: é ele “Vertigo”. James Stewart e Kim Novak encabeçam um enredo baseado em “D’entre les morts”, do francês Boileau-Narcejac, onde um detetive é obrigado a uma reforma antecipada, após ter desenvolvido acrofobia (medo de alturas) e vertigens (uma falsa sensação de estar em rotação). Porém, é contratado para seguir a esposa de um homem, que tem assumido um comportamento fora do normal. Trata-se de um filme gravado em São Francisco, na Califórnia, e que eterniza muitos dos seus lugares. Hitchcock abraça aqui muitas inovações, como o uso do dolly zoom (recorre ao zoom para ajustar o ângulo de visão, enquanto a câmara recua, de forma a colocar o objeto aproximado em linha com a imagem), de forma a causar desorientação e as tais vertigens. O protagonista, que desenvolve uma obsessão pela personagem que vai seguindo, acaba por ser subjugado pelo fascínio da mulher, procurando, apesar disso, “tê-la na mão”, a partir do controlo visual que exerce. Neste filme, já conta com a colaboração de Bernard Herrmann, na composição das bandas sonoras, e do designer gráfico Saul Bass, que lhe faria sequências de títulos e de créditos com tipografia em movimento (começando isso em “North by Northwest”).

No ano seguinte, surge “North by Northwest”, com o protagonismo de Cary Grant, Eva Marie Saint e James Mason. É mais um filme em que um homem inocente é perseguido, desta feita com o fundamento de se tratar de um agente que procura impedir o roubo de um microfilme por parte de uma organização clandestina, microfilme esse que tem, em si, informação confidencial do Estado. É um filme mais leve, embora procure abordar as questões da Guerra Fria, servindo de inspiração para os filmes de James Bond. Em muito o conceito é similar, tendo em conta a presença de agentes secretos elegantes e contrastantes entre o bem e o mal.

O último grande filme de Hitchcock seria “Psycho” (1960), um dos mais fundamentais em toda a sua cinematografia. Anthony Perkins, Janet Leigh e Vera Miles protagonizam um enredo adaptado de um livro de Robert Bloch, sendo eles personagens da célebre série do realizador “Alfred Hitchcock Presents” (1955-1965, em que apresentou uma diversidade de histórias diárias com pouco menos de meia hora, sendo introduzidas e concluídas pelo próprio, momentos que se tornaram imortalizados). Foi um orçamento apertado, para além de ser um regresso ao preto-e-branco. Uma mulher que circulava nas redondezas de um motel dá de caras com o seu proprietário, um jovem que alega cuidar da sua avó na mansão desta. A história que se desenrola em torno desta personagem acaba por protagonizar a primeira experiência de um slasher, quebrando padrões e barreiras de violência e de sexualidade.

A cena icónica do assassinato que decorre no filme é uma das mais marcantes da história do cinema e é captada por uma diversidade de ângulos. Questões associadas ao passado continuam, assim, como grandes motores do enredo, atormentando as esperanças do presente e do futuro. As personagens tornam-se despojadas do amor, da família e de casa, embrenhando-se na escuridão que o motel e a mansão suscitam. De igual modo, a importância das janelas, dos espelhos e das sombras como reveladoras do rumo dos acontecimentos, traduzindo diversas ligações psicoanalíticas que as personagens vão mantendo dentro e fora de si, na relação com outrem.

Um filme igualmente importante é “The Birds” (1963), em muito lembrado por se tratar de um filme em que a grande força do mal parte de um bando composto por inúmeros pássaros, que invade um lugar da Califórnia e que atormenta a sua população, ao ponto de a atacar violentamente. É uma nova adaptação de um livro de Daphne du Maurier, que retrata os pássaros como uma força da Natureza que alerta perante a prepotência humana em relação a esta. As personagens são propositadamente representadas como desinteressantes e até pouco simpáticas, de forma a que os pássaros conquistem a simpatia do espectador, dando origem a uma ambiguidade crescente do outro lado do ecrã.

É isso mesmo que Hitchcock pretende transmitir, à imagem do que fez em muitos dos seus filmes anteriores, ao manipular as opiniões e os sentimentos de quem os vê. É uma forma menos declarada de atormentar e de perturbar o espectador, fazendo-o voltar para as suas próprias perturbações e atribulações internas. É o que faz nessa cadência de suspense crescente, conseguindo filtrar a atenção e limitá-la ao que o realizador pretende, vigiando-a constantemente por entre a autêntica viagem que conduz ao sabor da escuridão e do que esta esconde ao longo do enredo.

Alfred Hitchcock é um dos realizadores de destaque de toda a história do cinema. Abriu as portas à emergência dos thrillers e do horror psicológico com uma distinção diferente dos seus antecessores e deixou, como legado, um corpo numeroso de filmes e de trabalhos que interrogam o mais íntimo da humanidade. Distorcendo os valores éticos e os prismas psicológicos, o inglês orientou e pautou o seu cinema com a exploração dos símbolos e dos seus significados, por entre temáticas mais ou menos políticas, embora com um cunho sempre próximo do espectador. As suas simulações cinematográficas abriam o espaço a que quem visse o seu trabalho pudesse, a partir do sôfrego mistério e do arrebatador terror, navegar dentro do seu íntimo, descobrindo-se de forma mais aparatosa. Hitchcock permanece, tanto no visual, como na história, ao longo da história como a providência do medo e do inconveniente.

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