Os EUA como experimento da fragilidade democrática

por Cronista convidado,    7 Janeiro, 2021
Os EUA como experimento da fragilidade democrática
Fotografia de Michelle Bonkosky / Unsplash
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Em qualquer outro ano, em qualquer outra década, o que está a acontecer nos EUA seria motivo de estupefação tanto para os seus aliados como para os seus detratores. É no mínimo inconsistente ver como a “nação democrática mais sólida” do mundo decai neste estado de anarquia e caos patrocinado pelo governo que supostamente os deveria “defender e preservar” como dita a própria Constituição. Digo a “nação democrática mais sólida do mundo” por que nunca, em 244 anos de existência, os EUA sentiram na sua História as duras realidades de uma ditadura como a Europa, América Latina e Ásia foram palco. Por esse facto os EUA sempre se vangloriaram da sanidade democrática no seu território onde a alçada de um poder totalitário nunca tomou forma.  

Os EUA são na sua essência o estandarte da Democracia Moderna. Pela sua história e pelo seu empenho desde a sua conceção em elevar os ideais democráticos republicanos pelos quais a maior parte, quando não todas, as democracias ocidentais atuais basearam as suas filosofias para a edificação dos seus Estados. É irónico que ao longo da sua história a política externa americana, baseando-se na sua hardpolitik de “democracia por imposição”, se tenha pautado pelas inúmeras tentativas, muitas vezes bem-sucedidas de derrubar outros governos  como Iraque ou Afeganistão, onde este tipo de imagens que aqui vemos seriam mais  características.  

Para colocar em perspetiva seria como se um conjunto de indivíduos entrassem com recurso à violência pela Assembleia da República, local onde o corpo democrático legislativo  tem sede e onde os representantes dos portugueses (quer de esquerda ou direta) expressam a  voz dos seus eleitores. Nos EUA estamos perante terroristas domésticos energizados por um Presidente que eleva esta ação de ocupar os locais democraticamente demarcados a uma condição de “patriotismo”, relegando-os a uma insignificância de natureza antiamericana que levariam George Washington e Abraham Lincoln a contorcer-se nos seus túmulos. 

É de uma hipocrisia palpável quando o movimento ativista dos “Black Lives Matter” não foram recebidos de forma tão “diplomática” como estes indivíduos que hoje irromperam pelo Congresso americano. A diferença é que os BLM, em protestos na sua generalidade pacíficos, foram gaseados e atacados pela própria Guarda Nacional quando faziam marchas ao  apelo da justiça social e racial ao ponto de serem dispersados para que o Presidente pudesse fazer um teatro de publicidade mediático em frente a uma igreja onde nunca fora segurando uma Bíblia que nunca lera. Enquanto estes indivíduos que vemos nas imagens são capazes de  atacar o coração legislativo dos EUA denegrindo a dignidade que dele dimana com uma reação tardia por parte da Guarda Nacional e com um silêncio conivente e perturbador do próprio Governo que os agitou. 

A insatisfação pela perda das eleições é tal que o Presidente narcisista e egocêntrico a duas semanas de abandonar o cargo e incapaz de aceitar o processo democrático eleitoral certificado pelos Estados com legislaturas e governadores do seu partido, congeminou todo  um conjunto de teorias de conspiração que alegam fraude eleitoral, interpondo múltiplos processos judiciais para reverter o resultado e que em nada fruíram por que foram liminarmente rejeitados dada a falta de evidência que os consubstanciasse. Mais irónico ainda  é que muitas destas rejeições foram feitas por juízes nomeados pelo próprio Donald Trump. Esta ação descabida não só manchou os mais de 244 anos de eleições ininterruptas dos EUA como estabeleceu um precedente para que a própria estabilidade do processo eleitoral americano nunca mais seja o mesmo.

O dia de hoje seriam menos significativo senão fosse o dia em que o Congresso de forma cerimonial formalizaria a vitória, já certificada, de Joe Biden. Um dia que poderia passar completamente irrelevante para a maior parte da população americana num ano normal com um Presidente normal. 

Os EUA neste momento, e nos últimos quatro anos, têm sido a expressão máxima do experimento democrático numa nação relativamente jovem e das fragilidades que a Democracia observa quando não é preservada pelas instâncias máximas e quando é consentida por quem se cala. Donald Trump nos últimos quatro anos foi um presidente atípico que fundamentou toda a sua narrativa em constantes ataques à integridade das instituições do seu próprio país. 

Um experimento democrático que deve ser sintomático e revelador para as outras democracias ocidentais (nas quais Portugal se inclui) da erosão dessas mesmas democracias. Erosão causada pelos discursos divisivos de tantos líderes que hoje ocupam governo ou pretendem ocupar. Retóricas extremas que agitam uma população naturalmente saturada com a corrupção e instabilidade económica, mas que não legitimam essas mesmas narrativas. Vimos isso já com segmentos da extrema-direita a tomarem contornos que a Europa em tempos vivenciou. Presenciamos isso em governos do bloco da U.E., como a Hungria e Polónia. 

Por isso apelo aos portugueses, principalmente à minha geração, para no dia 24 de janeiro tome uma decisão consertada sobre aquilo que querem como futuro de Portugal. Não só para eleger alguém que represente e preserve a integridade democrática, mas, talvez mais importante, para asseverar de forma clara e evidente que em Portugal do século XXI não há espaço para extremismos e intolerâncias, apoiados em promessas populistas de falsos messias e falsas promessas. É a escolha entre um Portugal satélite de extremismo na Europa, tomando como exemplos os EUA, Brasil, Hungria e Polónia e um Portugal evoluído para um país que, no advento de uma nova década, consiga defender as liberdades cada vez menos garantidas.

Crónica de David Pampillo
O David é licenciado em Relações Internacionais.

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