Os contributos de Mouzinho da Silveira para o Direito em Portugal

por Lucas Brandão,    3 Novembro, 2019
Os contributos de Mouzinho da Silveira para o Direito em Portugal
Antiga nota de 500 escudos com Mouzinho da Silveira
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Mouzinho da Silveira é uma personalidade que é conhecida, no dia-a-dia, por dar o seu nome a diversas ruas em Portugal, nomeadamente no Porto e em Lisboa. No entanto, trata-se de uma figura marcante para que Portugal se tornasse num efetivo Estado de Direito, sustentado nos ideais liberais, que ultrapassavam os laivos autoritários do Antigo Regime. Foi assim que, no século XIX, se tornou numa das figuras mais consensuais num liberalismo que se impunha em Portugal com grande agitação, nomeadamente pela presença do Rei e das diferentes interpretações da Constituição da Monarquia e da subsequente Carta Constitucional, que antecipou os laivos liberais da primeira Constituição da República em Portugal. Instrumentos que ajudaram a burocratizar (no bom sentido, no sentido de estruturar e de o dotar de um quadro legal equilibrado e equitativo) um país ainda profundamente hierárquico e submisso à figura régia e aos poderes clericais e nobres.

José Xavier Mouzinho da Silveira nasceu em 1780, em Castelo de Vide, em Portalegre, falecendo a 1849, em Lisboa, com 69 anos. Formou-se em Direito e exerceu a magistratura – isto é, foi juiz – em Marvão, em Setúbal e em Portalegre ainda no pré-liberalismo. Depois do seu triunfo, no rescaldo dos conflitos contra os franceses e da questão da sucessão, que opôs o rei liberal D. Pedro IV ao absolutista D. Miguel, administrou as alfândegas portuguesas e chegou a Secretário de Estado e, depois, a Ministro da Fazenda – o equivalente ao atual Ministro das Finanças – e a interino Ministro da Justiça (e dos Serviços Eclesiásticos, como se denominava então). Foi nesta fase que, ao lado do secretário do Reino, o escritor mas também político Almeida Garrett, desenvolveu grande parte do seu contributo à legislação portuguesa, no governo que D. Pedro, em plena Guerra Civil, formou na Ilha Terceira.

Por entre as demais confusões do Setembrismo – movimento que defendia uma nova constituição, opondo-se à carta, por a considerar conservadora e inibidora de muitos dos valores liberalistas -, Mouzinho da Silveira viu o seu trabalho ser restringido, sendo obrigado a, por mais que uma vez, emigrar. No entanto, a sua ação permanece indelével naquilo que é a história do Direito em Portugal. Importa, de igual forma, mencionar o seu interesse pela propriedade de terras, o que o levou a intervir com mais fulgor e até emoção neste capítulo. Possuía uma herdade no Alentejo, que se estendia por várias povoações, embora também tivesse algum interesse na indústria que estava a brotar de há poucos anos até então. De igual modo, era um conservador que ainda possuía alguns dos ideais que o Antigo Regime detinha, chegando a fidalgo da Casa Real com D. João VI.

Foram trinta (entretanto, mais alguns) os decretos com os quais, em 1832, influenciou de sobremaneira Portugal. Procurou, na base, dotar o país de uma nova organização judicial, administrativa e fiscal, e procurou começar por o fazer nos Açores, avançando para o Porto de seguida. Os três princípios nos quais assentou a sua ação foram trazidos do liberalismo: a inviolabilidade da propriedade privada – que lhe dizia muito, tendo em conta as suas propriedades rurais -, a libertação de terras das pretensões senhoriais – dando azo à própria iniciativa privada -, e a liberdade pessoal. Em toda a sua ação, fundamentou-se na Carta Constitucional, assinada pelo rei D. Pedro IV a 1826, uma carta que despojava a nobreza e o clero dos seus privilégios crónicos, que defendia a soberania popular reconhecida na figura do Rei, defendia a liberdade religiosa e conservava os ideais de liberdade pessoal, de segurança e do direito à propriedade que a Constituição de 1822 já ratificava.

É com Mouzinho da Silveira que se procura dar o primado ao homem-trabalhador, como “marca dignificadora” da economia do país e que o ajuda a tornar-se num interveniente direto neste novo projeto de sociedade que o liberalismo traz a Portugal. A liberdade que lhe era conferida ajudava-o a poder ter autonomia nos seus negócios e a aventurar-se, mediante alguma regulamentação, numa iniciativa que se queria privada e geradora de um bem acrescentado. Como base, a igualdade entre todos estes indivíduos, procurando diminuir o impacto das eventuais discriminações que existissem à margem da lei, numa dinâmica justa e ordenada. São as leis que vão permitir a que os trabalhadores se possam reunir e integrar em instituições de apoio ao seu dia-a-dia, capazes de ser uma voz audível das suas preocupações e das suas intenções. As leis corporizavam, assim, a vontade coletiva dos cidadãos em prol do ideal do bem comum, capaz de proporcionar a harmonia social. O Estado de Direito começa, assim, a ganhar forma, com os próprios órgãos de Justiça a serem regulados e a verem o seu poder devidamente delimitado, evitando os excessos que o Absolutismo havia revelado.

O indivíduo via-se, assim, protegido a nível de direitos e restringido a nível de deveres. O discurso de Mouzinho da Silveira ia neste sentido, no de procurar libertar os meios e os seus agentes em prol de um bem individual que, em suma, se traduzia no bem nacional. É nestes moldes, assinalados aqui e no parágrafo anterior, que este alentejano vai transformando a Administração Pública, contribuindo, de igual modo, para o gradual afastamento da Igreja do poder temporal – isto é, daquilo que é a dimensão política e da governação da sociedade – e para que se concretize o poder dividido em três: o legislativo, que cria as leis, o executivo, que as aprova ou as reprova e as coloca em prática, e o judicial, que delibera com base nestas e condena ou absolve o indivíduo ou a entidade. Aqui, e no julgamento dos crimes considerados públicos, que ultrapassavam as comarcas, Mouzinho idealizou um órgão que pudesse deliberar sobre esses delitos – o atual Supremo Tribunal de Justiça (terceira instância de resolução de causas). É o célebre decreto “sobre a reforma das justiças”, do qual emana o cargo de procurador-geral da Coroa (leia-se, aos dias de hoje, da República), aliado ao Supremo Tribunal, responsável por ser consultor das diferentes Câmaras constituintes da Coroa, e até intervindo, em caso de necessidade, como Comissário do Estado, assim como de exercer funções como membro regular do Supremo Tribunal. De igual modo, assistiu-se à atribuição de um procurador a cada tribunal de segunda instância – os desembargadores, que resolviam os recursos dos crimes que iam a julgamento nos de primeira instância. Já aos tribunais de primeira instância – todos aqueles de corrente julgamento de causas -, juntava-se um delegado do procurador. Criaram-se, assim, as bases para o desenho daquele que é o Ministério Público conforme hoje o conhecemos.

A resolução dos conflitos passa a ser somente da responsabilidade dos órgãos de segurança e dos tribunais, assumindo-se a utilização da violência por parte das autoridades públicas, assim como a própria repressão policial, e abolindo a sua utilização pelo comum cidadão. Este, porém, vê-se reconhecido com o direito à petição, um meio de atuação direto por parte do cidadão em prol da salvaguarda dos seus direitos.  Aquilo que fica patente da ação de Mouzinho é mesmo colocar o cidadão e o Estado em discurso direto, tendo em conta os princípios de liberdade, de segurança, de equidade, decalcando a própria ordem natural das relações de poder para o Direito. É o que procura trazer, não só para a Administração Pública, mas também para os moldes nos quais a “fazenda”- isto é, as relações económicas – se concretiza. A economia torna-se, também ela, mais liberal e universal, mais possível a mais gente, assim como o próprio tratamento feito pela justiça. O registo civil é institucionalizado para todos, como prova desse reconhecimento dos cidadãos. Registam-se os casamentos, os divórcios, os nascimentos e os óbitos.

O Tesouro da Fazenda – os cofres públicos como os entendemos hoje – via o seu âmbito encurtado perante a iniciativa privada. Muitos dos impostos e das contribuições existentes até à data no plano comercial são abolidos perante o primado do progresso material, isto é, de um sucesso individual que não deve ser restrito pelo Estado, se em cumprimento da lei. Aqui, enquadram-se todos os privilégios que favoreciam o clero e alguns monopólios económicos, como o da Companhia das Vinhas do Alto Douro, que libertam a economia dos favorecimentos a nível das terras e do comércio. Assim, as alfândegas deparam-se com um papel menos relevante no sentido das cobranças, visto que as importações e as exportações se tornam menos oneradas. Com isto, pretende-se criar uma atmosfera que possibilite e sustente a livre iniciativa no trabalho, capacitada de dar a usufruir os ganhos a quem os cria. Porém, e de modo a que se garanta a autonomia das contas da nação, também Mouzinho da Silveira legislará uma contribuição – aquilo que, atualmente, se entende como imposto – ao Estado feita por todos aqueles que geram riqueza , de forma equitativa e proporcional a esses ganhos. Em troca da proteção do Estado através da lei, surgem os deveres e, assim, as contribuições, contribuições essas que não excedem aquilo que, em percentagem, se pode estimar nos 10% de um mês (3 dias ou menos). Em caso de necessidade, a lei abrange a hipótese de existirem contribuições suplementares na entrada e saída de produtos para fora do país. O Estado ganharia, assim, meios para uma subsistência independente da sua representação régia e das Cortes.

É interessante, também, perceber como Mouzinho da Silveira interpretava a lei. Esta manifestava todos os ideais que o liberalismo apregoava e colocava em prática todo o ideário que trazia um novo fôlego a cada cidadão. Materializava a já mencionada ordem natural, que impedia que se formassem os monopólios económicos e o clero na forma de obstáculo a uma sociedade assente na liberdade individual e na sua iniciativa livre. Uma ordem natural que conduzia à necessidade de um estado laico, embora reconhecedor da importância da religião na vida de cada indivíduo (Mouzinho até defendia que a Igreja se enquadrasse no setor público, a ser financiado pelo Estado, por se tratar de uma necessidade primária de um homem liberal). A lei legitimava o que se considerava natural e colocava de parte aquilo que punha em causa essa harmonia natural.

Apesar de distante daquilo que consideramos como efetivos progressos da lei, tendo em conta as questões de género, de raça e até de religião, o liberalismo foi o primeiro movimento que trouxe alguma autonomia ao cidadão comum, que permitiu que este se emancipasse das hierarquias e pudesse singrar através da sua iniciativa. Mais do que afirmar a liberdade individual, a sua segurança e o direito à iniciativa e à propriedade singular, ficou redigido em forma de lei, que passou a codificar o normal funcionamento das estruturas administrativas do Estado. Embora pesem algumas nuances que ainda pesam e que podem sensibilizar aos olhos de hoje, aquilo que se considera de primordial em muitos aspetos, nomeadamente no reconhecimento do cidadão-trabalhador como livre e autónomo, foi herança de um investimento que Mouzinho da Silveira fez ao serviço do país. Foi neste prisma que Mouzinho contribuiu, de forma vincada e assertiva, com um corpo de legislação que se tornou determinante para um país que se descobria e que se reconhecia como democrático.

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