Os anónimos do século XX português, em “Maré Alta”, de Pedro Vieira

por Miguel Fernandes Duarte,    31 Março, 2019
Os anónimos do século XX português, em “Maré Alta”, de Pedro Vieira
Capa do livro
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O século XX foi um período de contradições marcantes. Em Portugal, foi o século da implantação da República, mas também o da sua dissolução em troco de uma ditadura; foi o século do êxodo e da guerra, mas também aquele que viu uma revolução pôr fim à miséria. Como na Europa, foi o século dos extremos: paz e violência, direitos humanos e genocídios, estado social e neoliberalismo.

Ora, se o tempo contemporâneo, com narrativas em que a crise se misturava com o ambiente suburbano, foi o foco dos dois romances anteriores de Pedro Vieira (mais conhecido pelo seu blog Irmão Lúcia e pelo seu trabalho na televisão), Maré Alta, o seu terceiro romance, publicado pela Companhia das Letras, tem em si a ambição de abarcar o século XX na vida de uma família. Mas, se há famílias que, por terem tomado parte activa nos acontecimentos marcantes do século, são inseparáveis da História, outras há que pelo tempo deambulam, ineficazes e passivas perante qualquer mudança. Maré Alta vive precisamente entre esses dois polos, o de viver a nossa vida sem qualquer interesse pela conjuntura externa e o de pôr mãos à obra e influenciar a mesma. Porque, mesmo numa família como aquela sobre a qual incide o romance, uma das que nascem e morrem sem deixar marca na história a contar às gerações vindouras, há quem não se contente com o que lhe é deixado.

Augusto (ou Samuel, nome que mais tarde adopta), personagem centro de um romance onde várias outras nos são apresentadas, é precisamente desses que nunca consegue estabilizar numa vida normal. Filho único, Augusto cresce na pequena aldeia de Molhos, ao largo de Leiria, lado a lado com Afonso, filho do retirado revolucionário republicano para quem seus pais são caseiros, e os dois formam um vínculo fraternal.

A infância de ambos é conjunta, com ambos ministrados pelo mesmo preceptor, tão dedicado ao filho do patrono quanto ao filho dos caseiros. Mas, para desgosto de Ana, mãe de Augusto, quem detém maior influência sobre a vida destes jovens é Vicente, o tio anarquista de Augusto que vive em Lisboa e é parte activa de organizações clandestinas, o irmão de quem Ana nunca se orgulhou. Nas várias ocasiões em que anda fugido às forças de ordem, refugia-se na pequena aldeia de Molhos, e é junto destas crianças que se vai entretendo, contando-lhes histórias e ensinando-lhes o oposto do preceptor.

Pedro Vieira por Marcos Borga/Visão

Quando um homem aparece nas redondezas da aldeia perguntando por Vicente, o perigo acerca-se e a família assusta-se. Augusto teme vir a perder o seu tio para as mãos de outros, mas é Afonso, acabado de se tornar adolescente, quem toma nas suas mãos o dever de proteger Augusto da tristeza de perder o seu tio e, com um tiro, elimina a ameaça externa.

Perante tal tragédia, resta à família condenar Afonso ao exílio nos Estados Unidos como única forma de o proteger. Mais vale perder as suas raízes que perder a sua vida. Augusto vê-se, assim, a braços com a partida do seu quase irmão e a amargura de ter sido outro, e não ele, a salvar o seu tio. Deveria ter sido ele a premir o gatilho para salvar o seu tio, mas, enquanto Afonso sempre fora impulsivo e impiedoso, Augusto era o mais calmo e contemplativo dos dois.

Tudo o que se segue é inseparável deste ressentimento por não ter sido ele a agir e, com a influência do tio, Augusto dá por si a envolver-se também ele na luta clandestina, mudando o seu nome para Samuel e a sua narrativa familiar para o Minho. Daí, toda uma quantidade de cenários se percorre, desde a pesca do bacalhau à emigração portuguesa nos bidonvilles de Paris, passando pela luta pela independência das ex-colónias portuguesas e pela já referida luta anarquista contra o Estado Novo.

Pedro Vieira consegue desviar-se dos lugares-comuns armadilhados a que tamanha ambição poderia levar, e presenteia-nos com uma obra profundamente humanista e capaz de nos solidarizar com tantas vidas desfeitas. As vidas dos espoliados, daqueles que não ficam na história. Tal como não ficou o avô ausente de Pedro Vieira, desaparecido e nunca nomeado pela sua mãe e pela sua avó, o familiar perdido que inspira este Maré Alta. Como seria este homem que existiu, mas permanecerá completamente anónimo? Qual seria a sua história? Poderia ele alguma vez ser Augusto? Na verdade, pode ser qualquer um, e essa é a beleza da ficção. Um lugar onde podemos procurar no real aquilo que a realidade nunca permitirá confirmar.

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