Omnipotente

por Frederico Lourenço,    18 Julho, 2019
Omnipotente
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Numa cena da célebre sitcom «Friends», os seis amigos perguntam uns aos outros o que fariam se fossem omnipotentes por um dia. Alguém responde: «if I were omnipotent for a day, I’d make myself omnipotent forever».

A personagem da popular série americana, que gostaria de ser omnipotente para sempre, passaria, então, a um estatuto igual ao de Deus? Porque omnipotência é um atributo de Deus, certo? Tal como omnisciência, omnividência e ubiquidade. Deus sabe tudo; vê tudo; pode tudo; e está em todo o lado.

Uma das surpresas que aguarda quem leia o Antigo Testamento sem nele retroprojectar todo o edifício teológico que lhe é posterior é que há passagens da antiga Escritura hebraica em que «Deus» (por vezes referido como YHWH, outras vezes Elohim, ou El, ou Adonai) não é imaginado como omnisciente, nem como omnividente, nem como ubíquo.

A razão para isto é que as diferentes tradições e as diferentes autorias dos livros que compõem aquilo a que chamamos «Antigo Testamento» implicam também diferentes épocas de pensamento e de escrita. Quando o profeta Jeremias (23:23) imagina Deus a dizer «se alguém se esconde em lugares secretos, não o verei? Não preencho Eu o céu e a terra?» está a imaginar um Deus com atributos diferentes d’Aquele que passeou pela brisa da tarde no jardim do Éden e que pergunta a Adão «onde estás?».

Génesis 3:8-13 levanta, de facto, a interrogação sobre se o Deus aqui descrito está a ser imaginado como um ente que tudo vê (pois Ele não vê Adão e Eva) e que tudo sabe (Ele pergunta-lhes se comeram da árvore). Não é um Deus que esteja em todo o lado, pois está a passear pela brisa da tarde no jardim do Éden.

Por outro lado, noutras passagens da Bíblia, Ele está, em exclusivo, em Jerusalém – e, por isso, só em Jerusalém é lícito oferecer-Lhe sacrifícios. Nessa ideologia, de cujos ecos o Antigo Testamento está cheio, todos aqueles que sacrificam a YHWH noutros lugares (nos cimos das montanhas, ou sob a tão agradável sombra das árvores) estão a cometer actos de idolatria, porque Deus reside, em exclusivo, no Seu templo, na Sua cidade. (Por sua vez, outras passagens do AT também nos dão a ver YHWH com residência no Céu, donde vê e compreende tudo o que se passa na terra: por exemplo Salmo 33:13-15.)

A verdade é que a ideia de uma divindade que tudo vê e tudo sabe é tradicional entre os povos do Mediterrâneo: é justamente nesses termos que o poeta grego Hesíodo, compondo no século VII a.C., concebe Zeus no seu poema «Trabalhos e Dias» (v. 267). Para Homero, contudo, a divindade com esses atributos não é Zeus (que para Homero «vê ao longe», mas não vê tudo ao mesmo tempo, porque só consegue ver uma coisa de cada vez, como está claro no início do Canto 13 da Ilíada), mas sim o Sol (Ilíada 3.277; Odisseia 11.119). É uma concepção de divindade compatível com o que lemos no livro de Provérbios, onde se diz que os olhos de YHWH estão em todo o lugar (Provérbios 15:3).

Numa nota a esta passagem do Antigo Testamento, a excelente «Jewish Study Bible» (Oxford University Press) explica que se trata aqui somente de «omnisciência geográfica»; segundo os comentadores desta publicação imprescindível para o estudo da Bíblia, a passagem «does not suggest that God is omniscient in the sense that He knows the future».

Então no que consiste a omnisciência divina, se fica de fora o conhecimento do futuro que os gregos não hesitavam em atribuir aos seus deuses, especialmente Apolo? A omnisciência divina tal como ela é imaginada nos textos que integram a Bíblia implica somente o conhecimento do passado e do presente? Deus criou o homem sem qualquer noção do que daí resultaria? Em Génesis 6:6 lemos que YHWH «arrependeu-se de ter criado o homem sobre a terra e o Seu coração sofreu amargamente». Se Ele soubesse de antemão que o ser humano tenderia «sempre e unicamente para o mal» (Génesis 6:5), tê-lo-ia criado?

É interessante repararmos que Jesus, no entanto, concebe Deus em termos semelhantes aos que os gregos imaginavam no respeitante a Apolo. Em Mateus (24:36) e Marcos (13:32), Jesus fala num dia futuro que ninguém sabe qual é: nem os anjos, nem o Filho – só o Pai sabe que dia será. Para Jesus, portanto, a omnisciência de Deus abarca claramente o conhecimento do futuro.

O conhecimento do futuro é um tema importante para Jesus na sua qualidade de profeta (como ele se descreve a si mesmo em Lucas 4:24). Ao contrário dos profetas do Antigo Testamento, a quem eram atribuídas profecias de factos históricos depois de estes já terem ocorrido, Jesus é visto como um profeta de outro calibre: basta lembrar as palavras ditas a Pedro, «hoje, esta noite, antes de o galo cantar duas vezes, três vezes me terás renegado» (Marcos 14:30). Ou o facto de, no Evangelho de João, a mulher samaritana reconhecer Jesus como profeta (4:19) porque ele sabe tudo sobre a vida amorosa dela: Jesus sabe que ela vive com um homem com quem não é casada; e sabe que ela já teve cinco maridos antes do actual companheiro.

Estas duas passagens apresentam-nos Jesus com um nível de omnisciência que abrange passado, presente e futuro – algo que nem sempre os autores dos textos que integram o Antigo Testamento pensavam poder atribuir a Deus.

Finalmente (e voltando à conversa de «Friends»): sem o conceito de omnisciência não faz sentido falar em omnipotência divina. Para que tudo seja expressão do poder de Deus, para que Deus tudo possa, Ele tem também de ter conhecimento de tudo. Porque só Ele tem acesso ao conjunto completo de razões e de justificações. Por exemplo: só Ele sabe porque, sendo Ele o omnipotente Deus de Israel, permitiu o assassínio de milhões de judeus.

Note-se, porém, que a resposta à pergunta «sendo Deus omnipotente, como permitiu Ele o Holocausto?» já foi dada pelos profetas do Antigo Testamento; e tem como base a noção, justamente, de que Deus é omnisciente. Pois os profetas mostram-nos o povo de YHWH obrigado a padecer sofrimentos extremos que, de acordo com a mentalidade vigente entre outros povos, teriam constituído razão de sobra para o abandono do deus «derrotado» em prol dos deuses vencedores dos povos que haviam subjugado os judeus. Ao arrepio dessa mentalidade não-judaica, os profetas tentaram mostrar que a aparente derrota de YHWH era reinterpretável como prova da sua omnipotência. Na visão profética, os povos inimigos dos judeus (assírios, babilónios; por extensão de ideia, também os romanos e, mais tarde, os nazis) actuaram como agentes de Deus. Para os profetas do Antigo Testamento, não aceitar isso implicaria abdicar da ideia de um Deus omnipotente.

Aceitar isso, por outro lado, traz também muitos problemas. Muitos, mesmo.

Cuja solução teremos de pôr nas mãos d’Ele, confiando – quiçá circularmente – na Sua omnisciência como garantia da Sua omnipotência; e na Sua omnipotência como garantia da Sua (insondável) omnisciência.

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