O vento que trouxe Bob Dylan ao Porto

por Sofia Matos Silva,    10 Maio, 2019
O vento que trouxe Bob Dylan ao Porto
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Qual será a maneira ideal para ouvir a música de Bob Dylan? Como se consegue criar um ambiente livre de distrações, que permita a total libertação deste mundo e a imersão num outro? Uma das respostas possíveis seria um Coliseu do Porto completamente às escuras e com todos os telemóveis desligados. Um único foco de luz no palco, umas colunas de som, instrumentos e músicos. Seria suficiente.

A dez minutos das oito da noite, a fila desce até à interseção com a Rua de Santa Catarina. A Passos Manuel está apinhada de pessoas, entre turistas, fãs do músico e famílias a aproveitar o feriado para passear. Dentro da sala, o ambiente é de expetativa. Ouve-se a voz comum, que avisa ser proibido o uso de telemóveis e outros aparelhos para qualquer tipo de registo – ou para qualquer outro uso. Capricho de ‘diva’ ou o cansaço de um músico relativamente a um mundo que já não compreende e que sente não o compreender? Às 20h02, as luzes apagam-se e soam as primeiras notas de “Things Have Changed”.

“A worried man with a worried mind”, canta a voz inconfundível de Bob Dyan. A acompanhá-lo estão Charlie Sexton na guitarra, George Receli na bateria, Tony Garnier entre o baixo elétrico e o contrabaixo e Donnie Herron no pedal-steel (e, em certas músicas, no bandolim e no violino). Parte-se para “It Ain’t Me, Babe”, depois de um grande aplauso do público. Dylan não tenta qualquer interação com o público, mas este parece não se importar com isso. Quem exige boa-educação ficou em casa – já sabe que daqui não vai ter ‘boa noite’s nem ‘obrigado’s. A sala – esgotada logo no dia em que foram postos à venda os bilhetes – está preenchida pelos apreciadores de boa música, que já se habituaram ao feitio de Dylan.

“Highway 61 Revisited” é a terceira música a ser tocada. A estrutura mantém-se ao longo das duas horas de concerto. Bob Dylan canta no piano, levanta-se no fim de cada música para fazer um pequeno desfile até ao meio do palco, enquanto o público o enche com palmas e ovações. As luzes apagam-se, a música seguinte começa e as luzes ligam-se com um ambiente diferente. Na faixa anterior, formavam uma espécie de teia. Nesta, criam formas circulares. “Simple Twist of Fate” traz a harmónica, instrumento que o músico toca sem sair do piano. A harmonia entre os intrumentos é perfeita.

Nos últimos tempos, Bob Dylan tem regressado às origens. O folk e o blues fundem-se e dominam a noite, de um jeito calmo, ainda que nem sempre pacífico. “Dignity” contrasta com o tocado até então e permite ao público fazer mais do que apenas bater o pé. Na fila de frente, há quem se levante e dance com a música; Dylan levantou-se na faixa anterior e continua a tocar de pé.

“When I Paint My Masterpiece” traz consigo um instrumental fabuloso. Os músicos pintam, de facto, uma obra prima – mas as cordas e as teclas substituem os pincéis no que toca a instrumentos. As luzes de palco baixaram e tornaram-se sombrias, apontando apenas para o chão. A harmónica volta ao primeiro plano da tela, enquanto Tony Garnier presenteia o público com sequências de baixo. Deve ser bastante estranho tocar para uma sala de estátuas, na mais absoluta escuridão.

A sala reage às notas inicias de “Honest With Me” com palmas ritmadas. O mesmo acontece com “Tryin’ to Get to Heaven”. Para esta canção de 1997, Tony Garnier muda para o contrabaixo. A certa altura, o piano e o pedal-steel conversam um com o outro, num momento que faz os músicos sorrir. É interessante como a obra de Bob Dylan pode ser paradoxal. Tanto nos perdemos pelo som, mergulhamos de cabeça nas notas e elas tornam-se tudo o que existe, como ficamos abstraídos por completo do mundo corpóreo, viajando pelo tempo – a refletir o passado, analisar o presente e repensar o futuro.

Para “Scarlet Town” o bandolim junta-se ao contrabaixo e à guitarra nas cordas. Bob Dylan levanta-se do piano e junta-se aos músicos com um microfone de pé. Canta com o microfone de lado – a imagem típica de um senhor do blues. Ensaia uma dancinha, consoante as pernas lhe permitem, já que não caminha novo. Aliás, ao longo de todo o concerto faz esta espécie de dança ou desfile quando se dirige ao centro do palco. Mantém-se uma lenda viva, mas, de certa forma, uma sombra do passado também.

Não sei se o público sente o amor de Dylan, mas este sente, certamente, o amor do público. As palmas e as ovações são constantes nesta atuação que muitos apelidarão de ‘mágica’. “Make You Feel My Love” traz de volta a disposição inicial dos músicos no palco. Bob continua a tocar piano de pé e quando pega na harmónica, toca com uma mão em cada instrumento. “Pay in Blood” é mais uma música de Tempest, o disco de 2012 e serve de ponte para “Like a Rolling Stone”. Este é, sem dúvida, um dos pontos altos da noite, com a plateia completa a dançar ao som deste hino e a cantar com Dylan. Começa com a sala às escuras e vai progredindo gradualmente, culminando num Coliseu a aplaudir de pé e num Bob Dylan a sorrir e a fazer uma pequena vénia.

“Early Roman Kings” tem um tom ainda mais vincado de blues. As luzes do palco formam arcos, transformando o Coliseu do Porto no Coliseu de Roma, o anfiteatro da antiguidade clássica por excelência. A iluminação com tons quentes anima juntamente com a batida no contrabaixo, a maraca e o solo de guitarra.

Numa viagem nostálgica pelo tempo, regressa-se a 1963 e ao seu segundo álbum de estúdio, The Freewheelin’ Bob Dylan. “Don’t Think Twice, It’s All Right” é a música do que consideraria o momento da noite. Dylan toca sozinho no piano, com um foco de luz em si, a única fonte de luz a rasgar a escuridão. Termina a música com piano e harmónica – tocando, mais uma vez, com uma mão em cada instrumento. A máquina do tempo salta para 1997, com “Love Sick”, para 2006, com “Thunder on the Mountain” e um excelente solo de bateria, e para 2012, “Soon After Midnight”.

“Gotta Serve Somebody” é a última música antes do falso intervalo. As luzes ligam-se e os cinco artistas juntam-se no centro do palco para uma vénia; a sua saída despoleta palmas do público e a batida ritmada com os pés. O encore inicia com uma versão um pouco diferente de “Blowin’ in the Wind”. O clássico de 63 é tocado mais lentamente, com violino e maior trabalho musical. As luzes, agora, assemelham-se a um teatro, com faixas verticais.

“It Takes a Lot to Laugh, It Takes a Train to Cry” é a última música da noite. O ambiente lembra o de uma floresta, com as luzes a recordar os raios de sol a furarem por entre as árvores. A Never Ending Tour já dura desde 1988, mas há-de acabar um dia. Por seu lado, independentemente do homem, o músico deixa um legado que será eterno.

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