O que nos torna humanos e o que nos separa dum objecto que nos parece verdadeiramente humano?

por M. J. Cruz,    1 Setembro, 2017
O que nos torna humanos e o que nos separa dum objecto que nos parece verdadeiramente humano?
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Será que os andróides sonham? É uma pergunta que Philip K. Dick levanta e, num dos títulos mais importantes da ficção científica do século XX, acaba por responder. Será que os andróides sonham com ovelhas elétricas? deu origem ao clássico de culto Blade Runner. O filme aborda a emergência da inteligência artificial e a ambiguidade da nossa natureza humana. Já o livro é uma amálgama de boas ideias, muitas vezes mal explicadas, outras pouco desenvolvidas, mas com uma profundidade enorme.

A resposta ao título não demora muito tempo a surgir, através do diálogo interior de Rick Deckard, a personagem principal:

“Evidently; that’s why they occasionally kill their employers and flee here. A better life without servitude. Like Luba Luft; singing Don Giovanni and Le Nozze instead of toiling across the face of a barren rock-strewn field. On a fundamentally uninhabitable colony.”

Rick é um caçador de prémios com uma aversão natural a tudo o que é sintético. Os animais estão praticamente extintos e ter um real é sinal de sucesso e estatuto social. No livro Rick tem de se contentar com uma ovelha artificial que odeia, para manter aparências. E assim começa a jornada de Rick Deckard num mundo devastado pela World War Terminus – um código para terceira guerra mundial.

“He thought, too, about his need for a real animal; within him an actual hatred once more manifested itself toward his electric sheep, which he had to tend, had to care about, as if it lived. The tyranny of an object, he thought. It doesn’t know I exist. Like the androids, it had no ability to appreciate the existence of another.”

Philip K. Dick teoriza o principal problema que vamos encontrar na criação de uma verdadeira Inteligência Artificial: a empatia ou a falta dela que um objecto tem em relação à existência de outros.

“Empathy, he once had decided, must be limited to herbivores or anyhow omnivores who could depart from a meat diet. Because, ultimately, the empathic gift blurred the boundaries between hunter and victim, between the successful and the defeated.”

Muitos outros autores ao abordar a I.A. decidem seguir caminhos mais complexos e a perguntar directamente ao leitor ou espectador “O que nos torna humanos e o que nos separa dum objecto que nos parece verdadeiramente humano?” a resposta varia entre memória, empatia, motivações, um corpo orgânico ou a capacidade de sentir ou emular emoções, entre outras. Philip K. Dick decidiu que é a empatia que separa um objecto dum ser vivo. O resto é um subproduto inerente e necessário à criação de uma verdadeira I.A. como a implementação de memórias falsas, com a capacidade de reter e interpretar essas memórias em prol de emular emoções, um corpo orgânico e motivações próprias para sobreviver num meio hostil, etc.

Não é de admirar, portanto, que em Blade Runner a única maneira de distinguir um andróide dum ser humano é aplicando o famoso teste Voight-Kampff, uma série de perguntas emocionalmente provocativas que medem a resposta empática do sujeito – uma referência ao teste de During, agora mundialmente conhecido, mas praticamente ignorado fora do meio de ficção científica na década de 70 e 80.

Hoje em dia, a emergência da Inteligência Artificial é um dos tópicos mais importantes e falados no meio tecnológico. Ignorando a automatização da força de trabalho com robots a substituir cada vez mais os seres humanos no mais variado tipo de tarefas, a criação de uma verdadeira Inteligência Artificial é algo que divide opiniões. Elon Musk e Stephen Hawking são duas das maiores figuras a alertar-nos para o perigo que uma I.A. representa com o primeiro a considerar que é o nosso maior problema existencial e que estamos a “invocar o demónio”:

“With artificial intelligence we are summoning the demon. In all those stories where there’s the guy with the pentagram and the holy water, it’s like – yeah, he’s sure he can control the demon. Doesn’t work out.”

Stephen Hawking vai mais longe e visiona um futuro onde a inteligência artificial pode acabar com a humanidade:

“The development of full artificial intelligence could spell the end of the human race.”

Estas opiniões estão longe de ser consensuais e unânimes. Até há bem pouco tempo, o tema da inteligência artificial era apenas filosófico, um ensaio sobre a nossa natureza humana e completamente imaginário. No entanto, os avanços tecnológicos dos últimos anos deixaram especialistas como Musk e Hawking preocupados e, de repente, o surgimento de uma verdadeira I.A. escapou o reino da imaginação e entrou nas nossas vidas como um dos maiores problemas éticos e morais que teremos de enfrentar num futuro próximo.

A verdade, contudo, é que ainda não sabemos o que o futuro nos reserva. É certo que parece que a tecnologia está a avançar a um passo desmesurado e que, de um dia para o outro, vamos ser controlados por uma verdadeira I.A. com o potencial para destruir humanidade, mas, por enquanto, é tudo especulação. Entretanto podemos olhar para obras ficcionais, as suas análises e para a filosofia e formular a nossa própria opinião.

Com Philip K. Dick, através de Rick Deckard, a principal ameaça aos andróides em Blade Runner, assistimos a uma metamorfose inevitável tanto no livro como no filme. O seu ódio inicial a todas as coisas artificiais pela sua inerente falta de empatia muda no final das duas obras, embora de maneiras diferentes. No livro, Rick acaba por admitir que até as coisas eléctricas têm uma vida apesar de a considerar “miserável”. Também existe a questão de não se saber se Rick acaba por deixar o seu trabalho como caçador de prémios – algo que repete várias vezes ao longo do livro que irá fazer. Contudo, no final é óbvio que Rick é um homem cansado de “reformar andys” e sonha não com uma vida melhor, mas com uma vida simplesmente…diferente. No filme, a mudança é menos subtil. Rick apaixona-se por uma andróide e acabam por fugir e escapar juntos para um futuro tanto incerto como, possivelmente, pouco duradouro.

Em ambos os casos, o problema da empatia não reside apenas nos andróides, mas também no ser humano. É possível não sentirmos nada em relação a nada e ninguém e sermos menos humanos por causa disso? Philip K. Dick diz que não. Ou a nossa condição humana permite-nos criar empatia por praticamente tudo, até um androide alegadamente desprovido de emoções? Dick responde positivamente. Por exemplo, Isidore é uma personagem solitária no livro pertencente ao grupo dos chickenheads – humanos com faculdades mentais baixas e defeituosas devido à exposição radioactiva – que considera que os verdadeiros monstros não são os andróides, mas sim os caçadores de prémios. Esta mudança de perspectiva acontece quando Isidore trava amizade com uma andróide e lhe oferece um tecto e protecção contra o seu inimigo: Rick Deckard.

“His voice broke with hope and tension. “I think it would be t-t-terrific, Pris, if you l-l-lived with me. I’ll stay home a couple of days from my job – I have a vacation coming. To makre sure you’re okay.” And maybe Milt, who was very inventive, could design a weapon for him to use. Something imaginative, which would slay bounty hunters…whatever they were. He had an indistinct, glimpsed darkly impression: of something merciless that carried a print list and a gun, that moved machine-like through the flat, bureaucratic job of killing. A thing without emotions, or even a face; a thing that if killed got replaced immediately by another resembling it. And so on, until everyone real and alive had been shot.”

A personagem de Isidore é importante para percebermos que a empatia é um jogo que não se joga sozinho. Para ele, Rick Deckard é um monstro com traços de máquina que existe com o único objectivo de destruir tudo aquilo que ele ama. A empatia de Isidore por Pris é cativante pela sua inocência e ingenuidade. Isidore representa a parte de nós que quer acreditar. Acreditar que o que quer que o future nos reserve, teremos de ser nós, enquanto pessoas, a dar o primeiro passo e empatizar com o que vamos criar. Deckard, por outro lado, é o cepticismo, o nosso lado cínico e desconfiado.

Com Deckard e Isidore, Philip K. Dick mostrou-nos dois caminhos possíveis: encarar a I.A. como uma vida paralela à nossa e tratá-la e aceitá-la como aceitaríamos qualquer outra, embora com reservas e desconfiança; ou como Isidore e encontrarmos dentro de nós espaço suficiente para a amarmos.

“Don’t the androids keep you company? I heard a commercial on –“ Seating himself, he ate, and presently she, too, picked up the glass of wine; she sipped expressionlessly. “I understood that the androids helped.” “The androids,” she said, “are lonely, too.”

Talvez não seja de estranhar que Isidore seja consideravelmente diferente no filme e traços dele tenham sido incorporados em Deckard. O que não muda é a inevitabilidade da aceitação da I.A. como algo real e que teremos de enfrentar mais cedo ou mais tarde e, com ela, rever a nossa condição humana e todo o nosso código moral e de valores éticos que nos têm guiado até agora.

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