O professor de teatro

por Pedro Saavedra,    2 Junho, 2021
O professor de teatro
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Entrava sempre na sala antes dos alunos. Gostava de os receber como se a sala de aula fosse a sua sala de estar. E era. A sua sala de estar, de jantar, a cozinha e o quarto há muito que tinham sido transferidos para o edifício da escola. Não se falava disso, mas o Professor vivia algures na cave para lá do cemitério dos pianos. Lá, pelas fundações da escola, tinha construído a sua toca animalesca de ser que não tinha mais sítio para onde ir. E porquê ir, se era ali que estava a sua vida?

A vida do Professor tinha começado há muito tempo, demasiado, diria a sua já falecida mãe. Bastante politizado na sua juventude, sempre defendeu a liberdade absoluta de fazer e dizer o que lhe ia na alma. Sem filtros, tinha sido expulso de todos os partidos, associações e companhias de teatro por onde tinha passado. Pensador de natureza, com talento para complicar a mais simples das argumentações, era na vida académica que a sua personalidade lhe tinha oferecido a doce estabilidade de um emprego.

A sua toca era estável, à parte de alguma humidade que dava ao abrir e fechar da porta de entrada um efeito fantasmagórico. E era mesmo assim que se sentia quando entrava lá para dentro: um fantasma. Por mais obras de remodelação e alterações na orgânica do edifício, ali tinha sempre a segurança de uma cripta funerária há muito perdida nas pesquisas arqueológicas. Era uma divisão humilde, sem janelas, com alguns móveis que tinha salvado da rua e dois retratos que insistia em manter tortos na parede. Um da sua mãe e outro de uma criança. Talvez assim se sentisse mesmo no presente, no preciso meio, com uma lembrança para o de onde vinha, e outra para o donde deveria ter ido.

Era o pai daqueles alunos todos, que lhe aceitavam, facilmente, o mau feitio. Não tinha nascido com ele, mas ao longo do tempo foi percebendo que esse era o seu maior charme: ter um mau feitio. Expressão fechada, não respondia aos bons dias que surgiam em fila indiana, ao início do dia, nem sequer levantava os olhos para lhes receber a deixa. Apenas armazenava aquela quantidade de afecto gratuito que a juventude costuma ter com os mais velhos.

Toda a sua vida ensinara teatro. Já o ensinava há tanto tempo que até se esquecia se tinha feito algum teatro antes de o começar a ensinar. Mas isso interessava a quem? O que os alunos, ano após ano, turma após turma, geração após geração, queriam mesmo era que lhes mentisse com as suas histórias de um outro tempo. Um outro tempo em que o teatro tinha sido grandioso, em que os seus intérpretes e criadores tinham acompanhado o pulso da história e em que um após um, todos compreendidos ou não em vida, tinham ascendido ao panteão dos grandes. Isso dava-lhe um entusiasmo especial na interpretação das histórias ao ponto de todos lhe beberem as palavras inventadas como reais.

Ele era um dos pequenos, sabia-o melhor do que ninguém, mas não deixava que isso influenciasse as jovens mentes que estava a educar. Como os educar para o que eu próprio não conheço? Como os fazer acreditar naquilo que sei que será sempre uma mentira? As perguntas sem resposta viviam dentro dele, mesmo quando fingia entrar na escola todos os dias, usando uma porta lateral quase secreta para sair, voltando a entrar pela principal sempre com um Bom dia não correspondido do porteiro.

Mas houve um dia em que tudo mudou ou, pelo menos, pôde mudar. Um dos alunos seguiu-o até ao seu covil e vendo a humildade e a pobreza em que o Professor viva, contou a todos os outros que o Professor era um embuste, um louco que apenas contava histórias de um passado ficcional. O dia seguinte foi o seu último dia de aulas. O seu charmoso mau feitio já não fazia efeito e como que por magia os alunos já não lhe ouviam as histórias. O interesse tinha morrido, a mística tinha morrido e o Professor, esse, teve mesmo de abandonar a escola e fazer-se à estrada. Ser o Professor de Teatro era a única personagem que tinha interpretado bem e, sem personagem, o homem teve de partir.

Despedido, sem qualquer missão a cumprir, passou de Professor a apenas aquilo que tinha deixado para trás há demasiado tempo, um simples homem abandonado à sua sorte e sem casa onde ficar. A uns quarteirões de distância, aquilo que sentiu ser já uma distância segura, lembrou-se do que o pai lhe disse no dia em que lhe contou que ia para o teatro. Tinha razão. Porque todas as paixões da juventude acabam por passar, sobretudo quando já não se é jovem. E ali, no meio da estrada já não ouviu o, Cuidado!

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