O primeiro Agosto sem festivais de música

por José Malta,    30 Julho, 2020
O primeiro Agosto sem festivais de música
James Blake no NOS Primavera Sound, em 2019 / Fotografia de Linda Formiga – CCA
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Quando se fala dos célebres festivais de Verão estão inseridos todos aqueles festivais de música que decorrem durante toda a estação, começando em Junho e arrastando-se por vezes até Setembro. Dentro desse tão extensivo leque de festivais para todos os gostos, existem dois tipos distintos e que agradam mais a uns do que a outros. Por um lado, existem aqueles que se realizam perto das grandes cidades, em espaços mais artificiais ou comerciais, e que normalmente decorrem em Junho ou Julho num ambiente mais citadino. Por outro, temos ainda os festivais que fogem da metrópole, decorrendo em espaços de larga beleza natural, num ambiente mais próximo da vila ou da aldeia, e que decorrem normalmente em Agosto. Há quem avalie o festival pelo cartaz e por aquilo que lhe agrada, não havendo qualquer critério se este fica dentro da cidade ou mais longe do que o habitual. Para muitos é isso que os motiva a colocar algumas das suas economias de parte, para apostar na ida a um festival de música. Porém, mesmo assim, existe algo de especial nos festivais de Agosto pois são estes que nos levam a percorrer quilómetros até ao destino onde celebraremos algo com muito mais significado do que a música em si.

Os festivais de Agosto têm uma essência diferente dos restantes porque nos levam a correr por gosto, na companhia de amigos, de familiares da nossa idade que também gostam de música e de aventura, e até mesmo de amigos de outros amigos que facilmente se tornam nossos amigos também. Há todo um leque de peripécias que decorrem durante aqueles dias em que voltamos as costas à azafama das cidades e à bagunça das praias que se enchem de multidões, partindo para um ambiente onde a música, a natureza e a vila ou a aldeia conseguem gerar uma harmoniosa combinação. Não valeria a pena percorrer quilómetros com mochila e tenda às costas, uns de carro dividindo as despesas, outros de transporte em transporte em modo saltimbanco, se não fosse por algo que valesse tanto a pena. Pelo caminho, juntam-se as conversas sobre as bandas, as expectativas sobre o que de novo haverá, até chegarmos ao destino onde os habitantes estarão prontos para receber de braços abertos os festivaleiros provenientes dos mais diversos sítios.

Há de facto alguns sacrifícios que valem a pena, que nem todos estão dispostos a passar, e também algumas tradições que acabam por ser uma imagem de marca dos festivais de Agosto. Ajudar o amigo que não consegue montar a tenda como deve ser, quando surge sempre alguém mais experiente que está mais habituado a estas andanças. Saber lidar com os grandes gradientes de temperatura entre o dia e a noite, que se confundem com afrontamentos. Levar a toda a hora com insectos e outros seres vivos simpáticos que adoram estar na nossa companhia, mas que para nós se torna desagradável. Tomar refeições fora de horas e comer enlatados e massas quase todos os dias sem sequer enjoar, porque é a coisa mais fácil de cozinhar. Tomar banho com apenas um ligeiro fio de água fria a escoar, nesse milagroso duche que nos ajuda a despertar e a aguentar mais um dia de festival. Enfrentar aquele dia clássico onde chove torrencialmente e onde há lama por todo o lado. Inovar nos jogos de tabuleiro, nos acordes de quem leva uma guitarra e nos livros que passam de mão em mão e que nos fazem companhia durante as tardes ao sol. Para não falar ainda dos recantos a explorar enquanto a noite não cai, isto antes de começar a fuga para dentro do recinto por onde ansiamos a entrada em palco dos músicos e onde encontramos pessoas que também acabam por sentir o mesmo e que não estão ali apenas por estar, algo que se verifica com maior facilidade nos festivais mais próximos das cidades.

No regresso acabamos por vir sempre mais mortos que vivos, ressacados dos dias que nos proporcionaram uma miscelânea de sensações, prontos para retomar às nossas actividades e sempre com a expectativa de voltar no próximo ano. Cada um acaba sempre por adicionar mais uma série de bandas e de intérpretes ao seu currículo festivaleiro, isto contando com as repetições e com as surpresas musicais que testemunhamos. O hábito de ir aos festivais de Agosto tornou-se assim num ritual para muitos, até porque há sempre bandas e intérpretes que desconhecemos que nos surpreendem, havendo sempre um variadíssimo conjunto de coisas novas que nos enriquecem. Pessoas novas, locais novos, aventuras novas que nos marcam e que ficam para sempre na nossa memória. Tiramos partido de muita coisa para além da música nestes festivais e é isso que torna os tão especiais.

Este será o primeiro Agosto desde há muitos anos sem festivais destes onde, mais do que a música, há qualquer coisa de mais humano que prevalece sobre tudo o resto. Numa altura em que precisamos tanto dessa matriz humana, apenas nos contentaremos com recordações de outros festivais anteriores, perante um distanciamento que só nos consegue aproximar ainda mais das memórias festivaleiras que este Agosto traz consigo. Em breve esperemos que haja mais capítulos a adicionar às histórias dos festivais de Agosto, pois este hiato é apenas o fim de mais um volume de uma colectânea que ainda trará consigo muitos mais volumes certamente. E sim, esperemos que esse próximo volume seja mesmo para breve.

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