O paradoxo d’O Grande Circo Místico

por Diogo Lucena e Vale,    5 Janeiro, 2019
O paradoxo d’O Grande Circo Místico
“O Grande Circo Místico” (2018), de Carlos Diegues
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Há muitos bons filmes brasileiros por aí. No entanto, por não me lembrar da última vez que um havia estreado nos cinemas da NOS – talvez não tenha sido assim há tanto tempo – fui ver este. A folhinha no cartaz promocional que indica a passagem pelo festival de Cannes (fora de competição) e o nome de Carlos “Cacá” Diégues, figura importante do Cinema Novo, aumentaram a curiosidade.

A história do circo cujo nome dá ao filme, baseada num poema, também ele homónimo, de Jorge de Lima, inicia-se por capricho aristocrático, como prenda de um jovem para a sua amante, antiga artista circense hoje (1910) transformada em dançarina de burlesco. No seu mais de centenário desenrolar, esta história prolongar-se-á até ao século XXI, percorrendo cinco gerações.

“O Grande Circo Místico” (2018), de Carlos Diegues

O batismo da obra, noutras circunstâncias absolutamente vulgar, revela-se frutífero objeto de consideração aquando da análise da narrativa: a partilha de nome entre o filme e o circo cuja história é narrada poderá ser indicativo de que esta se trata da história do próprio cinema. As semelhanças são desde logo evidentes: o mui tortuoso caminho da sétima arte até se tornar, primeiro, numa gigantesca indústria em si mesma e, mais tarde, no ramo da indústria publicitária que hoje é, aparentemente tão diverso do do espetáculo circense, iniciou-se, também ele, com uma brincadeira entre aristocratas (Roundhay Garden Scene (1888)) e teve a sua fase enquanto atração de feira popular. Tratar-se da história do cinema quer dizer que, no fundo, esta é uma história sobre homens, homens esses que gostam de fazer sexo, nomeadamente com mulheres, mulheres essas que nem sempre gostam de, ou querem, fazer sexo com eles.

Assim o filme e as gerações progridem, estando a descendência sempre assegurada, ora pela submissão das personagens femininas, ora pelo excesso de vontade das masculinas. Façamos um pouco de matemática: para que um filme com uma duração de cerca de cem minutos cubra cinco gerações, terá de dedicar, em média, vinte minutos a cada uma delas, aos quais temos ainda de subtrair a duração das cenas de sexo. Torna-se, pois, claro que o espaço temporal para desenvolver personagens é deveras apertado. Entre os momentos dedicados a esta trama apressada com contornos melodramáticos, encontramos as cenas do circo, cuja magia é bem incorporada por Celavi (C’est la vie), o apresentador que não envelhece. Numa delas, efeitos especiais digitais de aspeto rudimentar dão forma a borboletas azuis que se espalham por toda a tela, num momento de simplicidade lírica que evoca o cinema de eras passadas, cujos efeitos especiais diferem destes somente por não serem digitais.

“O Grande Circo Místico” (2018), de Carlos Diegues

Por outro lado, a passagem do tempo trás consigo algumas mudanças: o circo torna-se cada vez mais decadente e a sua aura mística desvanece; ao mesmo tempo, vêm os progressos sociais, as mulheres tomando controlo dos seus corpos e da sua sexualidade, ou, pelo menos, assim deveria ser, pois o peso desta grande mudança é colocado nos invulgares ombros de uma fanática religiosa – Cristo tatuado na barriga e tudo – que toma um voto de castidade. Como se isso não bastasse, após ser violada, ela torna-se numa vilã que prostitui as próprias filhas gémeas. Estas, contudo, não se parecem importar, recebendo cada novo cliente com um sorriso genuíno nos lábios.

A passividade com que tudo isto é retratado é desconcertante. No final, através de uma nova cena erguida com muita ajuda de imagens digitais, Diégues parece afirmar que o cinema (ou o circo) ainda tem magia, ali mesmo, no corpo de duas putas libertinas. Uma resolução menos que ideal, que vem tarde demais. Menos que ideal não por serem putas, nem por serem libertinas, ambas perfeitamente válidas, mas somente porque o olhar fetichista sobre os seus corpos em pouco difere daquele que havia retratado os corpos das mulheres das gerações prévias. Adicionalmente, a sua libertinagem dificilmente poderia ser caraterizada como escolha própria, pelo que a ideia que resta é que a magia reside mais na aceitação da violação dos seus corpos do que em qualquer revolução autodeterminista. Que vem tarde demais, pois esta reviravolta não consegue apagar aquele que fora um olhar distante e indiferente perante os horrores cometidos até aí. Celavi? Peut-être, mas a magia do cinema sobreviver às atrocidades do passado não impede que as reconheçamos enquanto tal. Da forma como está, O Grande Circo Místico é problemático e, no mínimo, paradoxal.

Há muitos bons filmes brasileiros por aí. No entanto, por não me lembrar da última vez que um havia estreado nos cinemas da NOS – talvez não tenha sido assim há tanto tempo – fui ver este. Pena não ter sido outro.

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