O nosso livro dos abraços

por José Malta,    20 Junho, 2020
O nosso livro dos abraços
Fotografia de Karim Ghantous / Unsplash
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“O Livro dos Abraços” (El Libro dos Abrazos) é uma das obras mais conhecidas do escritor uruguaio Eduardo Galeano, e foi publicada em 1989. Trata-se de uma colectânea de deliciosos contos, pequenos e singelos, acompanhados de diversas ilustrações seleccionadas pelo autor, que podemos encontrar à medida que percorremos as páginas do livro. Nesta obra são apresentadas algumas das vivências mais marcantes do escritor, através de crónicas, ensaios e relatos. Existe também, em alguns dos textos, uma abordagem de temas pertinentes que o próprio achou que seria interessante retratar, tais como política, cultura, religião e a sociedade em si. No livro não existe um fio condutor que faça o leitor chegar ao título, ou seja, o leitor não encontra no livro uma justificação que faça com que este seja “O Livro dos Abraços”. De um modo geral, Eduardo Galeano teve livre e espontânea vontade ao escolher o título para esta sua obra, que não se pode dizer que esteja directamente relacionada com os abraços em si.

Uma das coisas que a pandemia nos privou foi do contacto direto e físico com as pessoas que mais gostamos. Muitos achavam que, depois do confinamento, sairíamos à rua e poderíamos correr junto das pessoas de quem mais gostávamos, onde, eventualmente, daríamos aquele abraço que, mais do que um cumprimento, é uma manifestação de afecto. Porém, as coisas nunca seriam assim, e este é um processo gradual e que, ao que tudo indica, terá ainda um período de duração considerável. Continuamos a respeitar o distanciamento, cumprimentando as pessoas de quem mais gostamos com o cotovelo, acenando às pessoas que vemos do outro lado da rua e com as quais tínhamos o hábito de apertar a mão ou de dar dois beijos sempre que nos encontrávamos. Ainda há não muito tempo, víamos no meio das ruas ou nas paragens dos transportes públicos alguns indivíduos com cartazes que diziam: “Abraços Grátis” ou “Free Hugs”, e que distribuíam abraços gratuitamente por quem quisesse ser abraçado. Não será tão cedo que voltaremos a ver novamente a moda dos abraços grátis a cada esquina, algo que nos poderia parecer estúpido mas que, hoje, faz todo o sentido que exista, e com enorme abundância até.

Somos uma espécie que, para além de necessitar das condições que garantem a nossa subsistência, precisa de sentir diariamente um toque humano das muitas maneiras que existem na sua transmissão. O abraço é a maneira mais simples e nobre de confortar, animar, congratular, transmitir um calor nosso ao outro quando este mais precisa, ou quando nos sentimos felizes pelo seu sucesso. É uma atitude impetuosa, que, muitas vezes, é difícil de travar, e tivemos que aprender a evitar abraçar outras pessoas dada a situação actual em que vivemos. O mesmo aconteceu com as outras maneiras de cumprimento e de saudação, que nos conseguiam confortar diariamente e que simbolizam uma atitude simpática e cordial para com os outros. No fundo, sempre que o fazemos de boa vontade, acabamos por nos sentir bem com estes gestos, assim como também se sente bem quem os recebe.

Não é só dos abraços que precisamos, mas sim de um ligeiro toque humano que nos habituou a enfrentar os nossos dias com mais energia. Precisamos também, por exemplo, numa situação laboral, que alguém nos coloque a mão no ombro quando estamos em baixo ou estamos a atravessar um período menos inspirado, como sinal de confiança nas nossas capacidades ao fazer uma tarefa que nos é atribuída. Precisamos também de sentir uma palmada nas costas quando essa tarefa é bem executada, mesmo que o chefe seja demasiado duro ou já estejamos fartos do seu grau de exigência. Precisamos de sentir o aperto de mão daquela pessoa mais velha, ou de alguém que tanto admiramos, ou do nosso adversário num jogo ou num debate, como forma de manifestar o nosso respeito pela outro. Precisamos que, num momento mais festivo, nos toquemos de forma a também partilhar as emoções que sentimos à flor da pele com os outros, algo que se via muito nos festivais de música, um dos poucos sítios onde o espírito humano prevalece sobre tudo o resto. Caminhamos devagarinho para que possamos voltar a uma realidade o mais próxima possível da que conhecíamos e é necessário que caminhemos todos com esse propósito, algo que neste momento não se verifica.

Numa altura em que precisamos tanto de toque humano, é irónico que o ódio se tenha propagado como há muito não se via. As diferenças na nossa cor da pele, na ideologia política, ou até em simples gostos ou posições, falaram mais alto do que os abraços que precisamos e que tardam em aparecer. A resposta que demos após uma situação de união no combate a uma pandemia, que ainda persiste, foi uma total fricção, repulsa e violência com aqueles que têm supostas diferenças relativamente a nós mesmos, e que não são mais do que variações mínimas dentro de uma raça única que é a raça humana. Muitas vezes, é bom também sentir o toque de alguém que tenha uma opinião ou uma posição diferente da nossa, pois faz com que nos sintamos ainda mais incluídos, até porque o que mais une as pessoas numa equipa, ou num grupo, ou no que quer que seja, não são as semelhanças, mas sim as diferenças. E, muitas, vezes essas diferenças são colmatadas com um abraço que nos consegue dar força para enfrentar os desafios a cada dia.

Mais do que uma manifestação de afecto, e sobretudo de um humanismo profundo que há em cada um de nós, cada abraço tem também uma história. Talvez esta tenha sido a principal razão que levou Eduardo Galeano a intitular esta sua obra por “O Livro dos Abraços”, pois tanto os abraços, como os seus contos revelam isso mesmo. É, de facto, bizarro que, no decorrer desta situação, a espécie humana tenha tido uma facilidade em largar os abraços, partindo para uma violência que já existia muito antes da pandemia, embora de um modo mais contido. Tendo em conta a situação que proporciona a ausência de um contacto humano físico, há ainda quem pergunte se este poderá este o fim dos abraços e se o nosso toque humano para com os outros irá terminar de forma a evitar contágios deste vírus como de outros que venham a surgir. Esperemos que não, e esperemos ter ainda muito mais abraços para distribuir e oferecer àqueles que mais precisam e merecem. Esperemos continuar nesta nossa vida onde, sempre que precisarmos de um abraço, estará sempre alguém por perto para nos dar. Esperemos, através de uma história que há em cada abraço, ultrapassar este hiato e continuar a construir aquele que é também o nosso livro dos abraços.

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