O mundo num lugar estranho

por Cronista convidado,    3 Junho, 2020
O mundo num lugar estranho
Fotografia de Fred Moon / Unsplash
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O mundo está a posicionar-se num lugar estranho — o do atraso no tempo. Caminha-se a passos largos para o passado, mas não para o corrigir — para o repetir. Os acontecimentos dos últimos dias, desencadeados com a morte de George Floyd, brutalmente (e lentamente) asfixiado, enquanto algemado, por um polícia com as suas mãos nos bolsos, simbolizando a simplicidade de um homicídio, fez com que um tumulto de vozes se fizesse ouvir. A morte já foi confirmada como um assassinato em praça pública

Felizmente o progresso tecnológico permite a constante documentação de tudo o que acontece e mostra-se mais valioso do que o simples “panfleto publicitário” a que estamos habituados com os milhares de influencers (em Portugal alguns mudos perante esta situação) e os seus descontos em material de ginásio, comida, etc.; as redes sociais demonstram ser uma mais valia na difusão do crime e na organização de protestos e manifestações perante a crueldade desumana que acontece diariamente em todo o mundo.

Em Portugal houve a politização do que aconteceu e a afirmação de futura censura face às chuvas de críticas da brutalidade policial — em suma, prisão para os comentadores de redes sociais que se oponham à polícia. Ora, isto revela-se uma boa hora para reler alguns dos pensadores do século passado que viveram na pele esta realidade distópica, como por exemplo Hannah Arendt: “Daí resultou que o contrário da verdade foi a simples opinião, apresentada como equivalente da ilusão, e é esta degradação da opinião que dá ao conflito a sua acuidade política; porque a opinião e não a verdade, é uma das bases indispensáveis de todo o poder.” (Verdade e Política, ed. Relógio D’Água 1995)

Tornou-se uma verdadeira luta distinguir a verdade da simples opinião. Aquele que diz a verdade pode muito facilmente perder a linha de demarcação que a separa da opinião e transformá-la nisso mesmo, em opinião. “Os factos são a matéria das opiniões, e as opiniões, inspiradas por diferentes interesses e diferentes paixões, podem diferir largamente e permanecer legítimas enquanto respeitarem a verdade de facto. A liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os factos não estiver garantida e se não forem os próprios factos o objeto do debate.” (Verdade e Política)

Apenas podemos acompanhar digitalmente e virtualmente os acontecimentos nos Estados Unidos da América, mas como mencionei acima, há a possibilidade de os assistir através de vídeos amadores que revelavam um “ângulo morto” que muitos meios de comunicação optam por esconder (ou são forçados a tal). É necessário que haja uma perspetiva ampla de todos os acontecimentos e não uma modelação. “Quanto mais numerosas forem as posições das pessoas que trouxer ao espírito quando reflito sobre uma questão dada, tanto mais posso imaginar como me sentiria e pensaria se estivesse no seu lugar, mais forte será a minha capacidade de pensamento representativa e mais válidas serão as minhas conclusões finais, a minha opinião. (…) O verdadeiro processo de formação de opinião é determinado por aqueles em lugar dos quais alguém pensa e usa o próprio espírito, e a única condição para esse emprego da imaginação é a de ser desinteressado, estar liberto dos seus interesses privados.” (Verdade e Política)

Para uma tal formação de opinião requer-se o tal “colocar-se nos sapatos de outrem” e percecionar os acontecimentos para lá dos interesses privados. Um homem branco não sabe o que é o racismo (na medida em que não o sofreu do mesmo modo que uma pessoa negra), mas pode compreender o que é o racismo. Mostrar-se solidário com toda a dor e perceber aquilo que os humaniza. Há uma intrínseca partilha de sangue, carne, ossos — um ser humano é um ser humano. A dor é sentida do mesmo modo, todos são mortais e essa mortalidade (especialmente a precoce) traz o sofrimento de familiares, amigos e comunidades da mesma forma para todos. A unidade humana está antes da raça, etnia, orientação sexual e cores políticas.

Uma massa de pessoas apela ao pacifismo e censura as manifestações, afirmando que “só estão a dar mais razões para serem racistas” (e mais umas quantas declarações estapafúrdias, tanto na América como em Portugal) devido à violência das mesmas. Pois bem, torna-se complicado (para quem já assistiu aos vídeos compreenderá melhor) permanecer inerte com milhares de polícias agredindo transeuntes simplesmente por caminhar, outros por protestar com megafones, outros por simplesmente serem negros (como foi o caso do agente do FBI que foi detido sem qualquer motivo e solto no instante em que os agentes boquiabertos viram a sua identificação). A violência desumana, sem olhar a meios para atingir os fins, é distribuída cegamente pela simples presença. Não intenta provar nada, apenas demonstrar a força por parte de quem já detém a força toda. Nem todos partilham da vontade de se ajoelhar e pacificamente juntarem-se aos manifestantes, com o mesmo fim.

“É verdade que retrospetivamente — quer dizer na perspetiva histórica — toda a sucessão de acontecimentos permite pensar que ela teria podido produzir-se de outro modo, mas é uma ilusão de ótica, ou melhor, uma ilusão existencial: nada poderia acontecer se a realidade, por definição, não suprimisse as outras possibilidades originalmente inerentes a uma qualquer situação dada. (…) Em casos de contestação, só é possível invocar outros testemunhos, mas não uma terceira e mais alta instância e a decisão é em geral o resultado de uma maioria; quer dizer, o que acontece é o mesmo que para a solução dos conflitos de opinião — processo totalmente insatisfatório, pois nada impede uma maioria de testemunhos de ser uma maioria de falsos testemunhos.” (Verdade e Política)

E é por isso que é importante a constante difusão mediática, através das redes sociais ou de qualquer outro meio à nossa disposição, para que o combate à injustiça, ao racismo, ao abuso de poder, à brutalidade policial, etc., não seja uma luta desigual, uma vez que facilmente seriam silenciados, como os restantes casos de negros assassinados na América. Há uma chance de se ouvir mais que um lado nesta luta.

Crónica de Márcio Luís Lima
O Márcio Luís Lima é de Viana do Castelo e da colheita de ’98. Licenciado em Filosofia (atual mestrando) na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Um apaixonado por boa literatura, de preferência no recanto mais sossegado da varanda ou numa esplanada a meio gás.

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