O marketing enquanto lobo em pele de cordeiro

por João Estróia Vieira,    19 Novembro, 2020
O marketing enquanto lobo em pele de cordeiro
Fotografia de Janko Ferlič / Unsplash
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No dia de hoje acordámos com o nosso Instagram inundado de partilhas da Dodot. O vídeo era sobre o Dia Mundial do Prematuro, mostrando a imagem de vários bébés prematuros ainda nas incubadoras e com uma música a puxar o nosso lado mais sentimental a acompanhar. Até aqui nada de mal, obviamente. O problema? A Dodot apelava à partilha do vídeo nas stories do Instagram identificando a marca e por cada partilha seria doado à XXS — Associação Portuguesa de Apoio ao Bébé Prematuro um euro, até um máximo de dez mil euros. Ou seja, mesmo que a marca alcance um número de partilhas absurdamente superior, o limite serão sempre os dez mil euros a doar. No momento em que escrevo este texto, o vídeo da Dodot tem já mais de um milhão de visualizações e mais de duzentos mil gostos.

O gesto é bonito e nada tenho contra iniciativas de caridade — apesar de preferir um modelo assistencialista a voluntarista —, mas será inocente? Trata-se de uma campanha que dura um mês (vai de 17 de Novembro a 17 de Dezembro) mas que coloca logo à partida um tecto ao montante que está disposta a doar. Estamos a falar de uma marca que não tem qualquer obrigação de o fazer, é certo, mas que pertence ao grupo Procter & Gamble, com produtos líderes em várias áreas, onde um deles, a Gillette, fez um contrato de sete milhões com o futebolista Neymar para campanhas publicitárias. Não comento a disparidade de valores, porque efectivamente a Dodot não tem obrigação de fazer qualquer doação, mas permitam-me que retire à mesma qualquer carácter de inocência.

Haveria várias alternativas. A primeira que me ocorre confesso que parte de um ideal meu: poderiam ter doado sem dizer nada a ninguém. Simplesmente isso. A Dodot é uma marca mais que estabelecida no mercado e dez mil euros são absolutamente residuais. Se queriam doá-lo, se havia essa vontade real, então que o doassem. Só isso. A segunda seria terem doado e dizê-lo depois, sem pedir partilhas. O gesto é bonito, não dependeria de terceiros e a mensagem passava. A empatia que a marca quer gerar com esta campanha também iria crescer neste formato. E depois, questionemo-nos até que ponto podemos mesmo falar de doação. Está a ser-nos pedida uma contrapartida cujo valor para a marca será bastante superior ao que estão dispostos a “doar”. Ora, se estamos a ser usados, nós e toda a nossa rede de contactos e pessoas às quais chegamos como rede de partilha e espaço publicitário gratuito, até que ponto é isto uma simples doação?

Conseguiram publicidade de forma barata em que nós fomos os seus próprios agentes e onde usaram o nosso espaço “publicitário” com um propósito que está longe de ser tão bonito e de boa índole como aparenta à primeira vista. É o uso do marketing como lobo em pele de cordeiro e as vítimas fomos todos nós. Para a história fica uma campanha muito barata com resultados enormes. E nós fizemos parte dela. Como alternativa deixo aqui diretamente o site da XXS, para quem quiser fazer uma doação. Garanto que se não pedirem partilhas em troca será um gesto muito mais puro. E termos partilhado a campanha nas stories não tem mal nenhum, só demonstra que somos seres empáticos. A Dodot é que se aproveitou disso.

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