O horror ao vazio: as fotografias nas redes sociais

por Nuno Resende,    18 Fevereiro, 2020
O horror ao vazio: as fotografias nas redes sociais
Joan Fontcuberta, Solenoglypha Polipodida, Fauna, 1986. Fonte: Science and Media Museum
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Juan Fontcuberta tem sido um dos mais profícuos teóricos sobre a ideia de pós-fotografia, período caracterizado por uma inflação na produção e difusão de imagens, mercê do tempo digital em que vivemos. Nas redes sociais são carregadas segundo a segundo, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia, números que chegarão com certeza aos biliões de fotografias, produzidas em vários contextos, na maioria diríamos privados mas cujo conceito constitui, hoje em dia, deturpação absoluta do seus sinónimos imediatos, os de particular, pessoal, íntimo. A fotografia é hoje impessoal e transmissível e tal como Fontcuberta refere, é-nos atirada, tal e qual a energia de um acelerador de partículas, a uma velocidade vertiginosa.

A ideia é poderosíssima e só fechando os olhos poderemos talvez pensar nas implicações de sermos sujeitos diariamente a estes feixes de imagens, algumas passando por nós como átomos ou partículas, outras voltando vezes e vezes sem conta aos nossos olhos.

Juan Fontcuberta vê a analisa a fotografia a partir das práticas e dos suportes contemporâneos ou já pós-contemporâneos, exemplificando com formas autorais de subversão e contestação da própria fotografia. Mas talvez não lhe tenha passado, ainda, pela ideia que não são só fotografias de gatinhos e cães, de pores do sol ou selfies que circulam abundantemente na internet. Há todo um universo de difusores de imagens, com o seu auditório, os seus fiéis e os seus discípulos.

No contexto português são algo frequentes as páginas de História e Arte que, em determinadas redes sociais virtuais, disseminam com abundância fotografias e outras reproduções. Na maioria geridas por amadores, como a «Monumentos Desaparecidos», mas também por académicos como no caso do «Porto Desaparecido». Os dois exemplos são meramente aleatórios, pois graças ao Facebook ou a qualquer rede social virtual, o carregamento e a difusão de imagens torna-se um meio fácil de conseguir a atenção.

Tudo isto se passa na completa paz dos anjos. Porque razão a partilha de imagens poderia ser prejudicial? Porque é que os gestores das redes sociais virtuais – epítome da grande ideia democrática de conhecimento – deveriam controlar a circulação de imagens (e já o fazem)? No fundo, a imagem fotográfica parece, mais do que nunca, a síntese das ideias de liberdade e de informação.

O facto é que, como Juan Fontcuberta e outros autores já fizeram notar a hiperabundância de fotografias não é uma qualidade dos tempos modernos. Como refere o ensaísta, «a saturação visual obriga-nos também, e sobretudo, a reflectir sobre as imagens que faltam, as imagens que nunca existiram, as que existiram mas que não estão disponíveis, as que enfrentaram obstáculos insuperáveis para existir, as que a nossa memória colectiva não conservou, as que foram proibidas ou censuradas…», etc. A questão é, como se vê, de suma importância. Há um conjunto de responsabilidades inerentes ao acto de carregarmos e difundirmos uma imagem nas redes sociais. A primeira delas é a escolha. Porque escolhemos aquela fotografia e não outra? A segunda é o impacto da nossa decisão. Como reagirão os leitores daquela imagem? Que sentido farão dela? Como a reutilizarão e de que os novos leitores compreenderão esta imagem? Quando a fotografia é produzida por nós, a responsabilidade da sua apresentação e difusão volta sempre a nós. Nós somos responsáveis ou pela criação da fotografia e ou pelo carregamento e, em último caso, indirectamente, pela mensagem que ela produzirá. Mas a difusão de imagens de outrem acarreta outro tipo de responsabilidade que, em muitos casos, é bastante clara à luz da legislação. Os direitos autorais da legislação actual contemplam, também, a fotografia e a sua produção. Alguns códigos são bastante rígidos quanto ao direito da imagem e ao direito de imagem. A tecnologia digital móvel permite que se captem mais facilmente e se difundam mais rapidamente imagens, nomeadamente imagens de indivíduos e das suas acções que noutro contexto e noutro tempo passariam despercebidas.

Mas, regressando às páginas e plataformas que difundem reproduções de História e Arte, creio que ainda nos falta um exame crítico profundo e sério sobre a sua função e utilidade. As próprias designações remetem-nos para ideias consentâneas com uma das principais qualidades da fotografia: documentar. De facto, documentar o passado é uma, se não a principal vantagem da fotografia, sobretudo para Historiadores. Mas quando abrimos uma dessas páginas, ou observamos com atenção as postagens que amiúde fazem os seus gestores, percebemos que o seu trabalho é a de um intérprete do Passado: a escolha que fazem, condiciona a leitura da fotografia e a sua interpretação. A maioria faz uma gestão cuidada da ideia de Passado: um tempo nostálgico que atrai os que se lembram e os que gostariam de se lembrar.

Na página «Monumentos Desaparecidos», por exemplo, é claro o seu objetivo principal, apresentar «tudo aquilo que fez parte da História de Portugal e foi destruído ou submerso em nome do progresso». Esta atitude antiprogressista é inerente a outras páginas que através de fotografias «antigas», a p&B ou outras reproduções, vão estimulando ideias saudosistas de tempos idealizados, entretanto perdidos. Os comentários às postagens ou publicações são, na maioria, de frustração, de ira e de raiva. Mas se estes desabafos imediatos, juntamente com os gostos da página do Facebook constituem expressões imediatistas de indignação, cremos que se vai criando, por um lado, uma cultura crítica em relação a tudo o que é novo e por extensão, mau e, por outro, uma estética da desilusão, bem patente na forma como o já muito avesso público português para a arte contemporânea inflama em questões de obras «modernas». Mas há mais: essas fotografias, de proveniências tão diversas como colecções particulares, arquivos e acervos governamentais circulam sem o mínimo de indicações técnicas, observações ou interpretações do responsável pela sua divulgação. Ou quando estas existem são copiadas de plataformas como a wikipédia e outras sem fiabilidade científica. Pior: a maioria das vezes circulam sem metadados ou qualquer indicação sobre datas, autorias e custódias.

Sozinhas, as imagens implicam reacções diversas. As tais mil palavras que as fazem são diferentes para cada leitor, embora estimulem ideias culturalmente próximas, dão azo a milhões de interpretações. São, pois, perigosas as imagens sós, uma vez que deseducam. Deixar uma imagem à solta sem a contextualizar ou permitir que o seu leitor conheça a sua origem e proveniência pode dar azo a perigosas mutações e utilização dos seus significados.

Para um professor estas páginas são deseducativas e antipedagógicas. Hoje, para qualquer trabalho escolar os alunos vão primeiro documentar-se à internet, recolhendo por vezes imagens cuja origem não é clara, nem a sua localização a explica. Sem referências concretas à sua data, autoria, entidade custodiante e localização digital e física (o chamado URL permanente) dificilmente se poderá justificar uma ilustração ou elaborar a análise de uma imagem fotográfica – metodologia que exige uma crítica externa e interna.

Temos consciência que para muitos leitores estas imagens são âncoras que os ligam ao Passado e para outros a verdadeira essência das redes sociais digitais: um longo percurso por gostos impulsivos, sem que haja tempo para ver em vez de olhar. Porém, inconscientemente estamos a ser submetidos a um tipo de tratamento muito semelhante ao que Alex, personagem principal do filme Laranja Mecânica, sofreu: as imagens que todos os dias nos chegam aos olhos e que devoramos avidamente em busca de amor ou ódio cria em uma disciplina básica de interpretação, maniqueísta e redutora.

Talvez valesse a pena fechar os olhos um pouco e pensar nisto.

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