O hamster e a sua roda

por João Gomes Esteves,    1 Maio, 2017
O hamster e a sua roda
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A fixação nos mistérios da vida são obsessões que acometem seres de tenra idade. Lembram sempre aqueles episódios de jovens, na idade em que o acne mais ataca, que permanecem a ruminar sobre o gozo (que supõem ser descomunal) por parte dos seus colegas. Estaria tudo bem se o problema estivesse circunscrito a esta faixa etária.

Contudo, dá-se o caso de existirem adultos que ganharam o gosto de gastar a sola dos sapatos e, no mesmo lugar, estão convencidos de que, na realidade, andaram. Quando se apercebem que não saíram do mesmo sítio, arranjam mecanismos de defesa para perpetuar e dar sentido ao seu movimento circular. Podemos acusá-los de falta de perspicácia, mas o seu ego indominável reage prontamente, ainda a tempo de vociferarem algumas palavras ácidas para com os outros: «é certo que vocês me veem como um hamster que se contenta com o andamento da sua rodinha. Em todo o caso, todos andamos na roda. Assim que dei por isso, ao contrário de vocês, passei a contentar-me com pouco. Já não tenho ilusões».

É interessante se nos fixarmos neste ponto. Para estas pessoas, todos os movimentos são circulares, como o hamster na roda. Digamos que o vanguardismo pode coexistir com o primitivismo, a sabedoria com a ignorância, a beleza com a fealdade, a alegria com a tristeza. Tudo no mesmo tempo e no mesmo lugar. Não se sai do ponto de onde se parte, porque é a roda que passa pela pessoa e não a pessoa que passa pela roda.

Em certa medida, há que congratular quem tem este tipo de pensamento, pois tudo isso parece quase correcto. Porém, estas pessoas estariam condenadas se não existisse um movimento oposto que se traduz em conceitos que divergem entre si, como duas linhas que se vão separando infinitamente. Estas pessoas não esvaziam os fenómenos, mas enchem-nos de certezas e convicções. Elas são fundamentais: ainda que pouco interessantes a especular sobre a realidade, tornam-se bastante úteis em termos evolutivos. São elas que nos avisam que para lá do cabo finisterra há um enorme precipício que termina no mar, mesmo que cabo seja uma designação algo exagerada, mesmo que finisterra seja uma imprecisão.

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