O fascismo saiu à rua em tempos assim

por Cronista convidado,    21 Janeiro, 2021
O fascismo saiu à rua em tempos assim
Fotografia de Hasan Almasi / Unsplash
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Talvez nem todos se tenham apercebido disto, ou talvez esta seja mesmo uma perspectiva um tanto ou quanto alarmista da realidade. Mas é para mim cada vez mais óbvio que assistimos à ascensão do neofascismo no Mundo. Mesmo que use velhas tácticas e mecanismos, e que seja suportado pelo mesmo velho capital, ele é novo na medida em que defende políticas económicas neoliberais e sobretudo porque se difunde à escala global de forma assustadoramente rápida e eficaz, incêndio alimentado pelo combustível das redes sociais (ferramenta de propaganda duma eficácia letal).  

Por outro lado, para quem como eu gosta de conhecer a História, a actual situação pandémica demarca com lúgubre nitidez o paralelismo com a ascensão do fascismo na Europa do início do séc. XX. Não foi por acaso que surgiu no rescaldo da gripe espanhola: um mundo em ruínas, onde o desencanto com o famigerado “sistema”, incapaz de proteger os mortos pela doença e os sobreviventes sem qualquer promessa de futuro que os enterraram, foi terreno fértil para o divisionismo, o sectarismo e o ódio mais gutural, tornou-se exponencialmente mais vulnerável ao perigo de contaminação deste vírus bem mais difícil de combater.  

A diferença está na nossa relação com o tempo: se antes, estas profundas mudanças socioeconómicas levaram décadas, hoje elas acontecem em 5 anos. A eleição de Trump foi, creio, paradigmática nesse sentido. Desde então, assistimos à captura de várias nações por parte destes movimentos autoritários, com uma agenda declarada: são contra o sistema (mesmo que sejam financeira e ideologicamente suportados pelos grande capital), o Estado Social (em que os mais frágeis são demonizados como subsídio-dependentes e não raras vezes  ostracizados com recurso ao racismo), a corrupção (mesmo que a perpetuem e invariavelmente sejam apanhados nas suas próprias contradições) e a máquina do Estado (tentando passar a ideologia neoliberal nas entrelinhas, com programas eleitorais onde propõem o desmantelamento  de serviços públicos universais e simultaneamente uma actuação política contraditória mas inconsequente, destinada apenas a manter o logro na opinião pública).  

O fascismo não se debate, tenho lido muitas vezes por aí. Embora tenda a concordar, importa-me vincar que o fascismo é uma coisa, os fascistas são outra. E com fascistas, tantas vezes (tão) bem mascarados, importa sim debater. Se desmascará-los pode ser considerado imperativo, é pertinente destacar que nem tudo deve ter palco. Há uma triagem que se impõe e que tem faltado: o ridículo não pode nunca conquistar o mesmo peso mediático, sob pena das verdadeiras questões perderem a sua real importância. Assistimos a isto com o fenómeno português: cada barbaridade proferida pelo líder partidário do movimento de extrema-direita cá  do burgo é repetida até à exaustão, noticiada por todos os órgãos de comunicação social, uma  cada vez pior que a outra. Pelo caminho, as atrocidades que merecem um real combate, ficam pelo caminho. A estratégia não é nova: assistimos a isto primeiro com Trump, depois com Bolsonaro, em que o grotesco foi sendo normalizado por força da saturação. 

Funciona, indiscutivelmente: enquanto pintamos os lábios de vermelho, continua sem ser claro para uma grande parte da população porque razão o programa eleitoral daquele partido defende uma coisa e as suas iniciativas parlamentares, outra. Pela simples razão de que ninguém, no espaço político, se dedicou a realmente desmontar a narrativa que utilizam.  

A dicotomia esquerda/direita vem sendo continuamente agastada, graças à escola de Chicago neoliberal, exímia a capitalizar o descontentamento (e a ignorância) das populações. Mas a verdade é que ela existe e reside numa diferença basilar: perspectiva. Antes mesmo de pensarmos em política partidária (porque antes da distribuição de partidos, vem a variedade de visões políticas num sentido mais lato), há que entender o que diferencia um posicionamento à  esquerda ou à direita. Enquanto que, à direita, se vê o mundo partindo do Eu (e portanto, a sociedade constrói-se na conjugação de diferentes eus), à esquerda vê-se o Eu partindo do  mundo (logo, os diferentes eus constroem-se partindo por isso da sociedade). É por isso que eu, sendo assumidamente de esquerda, assumo o Outro como uma responsabilidade minha, num sentido de comunidade que vai depois alicerçar a minha conduta individual. À direita, é o inverso: se eu garantir o meu bem-estar (e por conseguinte, cada um fizer o mesmo), todos estaremos bem. Onde a esquerda é comunitária e colectiva, a direita é individualista.  

Os partidos edificam-se na visão que têm sobre o modelo de sociedade que defendem. Por sua vez, este é construído com base em diferentes ideologias. Neste sentido, o debate político tem de recuperar a dimensão ideológica demonizada pela propaganda neoliberal: só o confronto de ideias importa. Hoje vemos a política como uma arena, onde se digladiam os diferentes intervenientes num combate pela conquista de poder. Estes debates da campanha às eleições  presidenciais são um bom exemplo disso mesmo: a quem interessa um frente a frente, onde ouvimos a mesma cassete repetida até à exaustão? Apenas a uns: os que, sem substracto, sabem que uma mentira repetida vezes suficientes se torna verdadeira.  

É por isso urgente recuperar a política para o campo que lhe pertence: o confronto de ideias, visões diferentes do mundo em debate, em que a (boa) governança se edifica na negociação de consensos entre as mesmas (por oposição à polarização com que tendemos a encarar hoje a  política).  

Não se debate com o fascismo? Não, mas combate-se, expondo as falácias, as mentiras, a propaganda, as ilegalidades e as incoerências dos seus intervenientes. E nesse combate há que distinguir o que é o movimento (e esses intervenientes directos) e o que é eleitorado. Porque com o seu eleitorado, debate-se sim. Desmontam-se as críticas que dirimem e os argumentos que utilizam, e para isso é preciso a coragem de olhar para dentro e não ter medo de expor os logros.  

Vivemos numa ditadura socialista porque o PS é governo? Era preciso acreditar que o PS é um partido socialista, mas para isto, não basta o nome ou ter (alguns) socialistas nas fileiras: é preciso que a cúpula se comporte como tal e que se desvincule do corporativismo como nunca foi capaz de fazer. Temos uma direita liberal e outra social-democrata, como diz o Presidente em funções? Era preciso mais que o culto messiânico apoiado no mártir Sá Carneiro e que se libertassem do jugo do velho capital feudalista. São invariavelmente os partidos do arco de governação os responsáveis por alimentar a fogueira do fascismo, na medida em que, detendo o poder para melhorar a vida das pessoas, optam por não o fazer. Ou pior, quando normalizam este tipo de movimentos, chamando-os para a mesa das negociações na ânsia de atingir (ou manter) o poder.  

Falemos de coisas concretas: Passos Coelho já não está no governo há 5 anos e ainda mantemos a legislação laboral do período do ir-além-da-Troika, onde há patrões a ganhar 90 vezes mais que os trabalhadores, incapazes que somos de reunir vontade de conciliar a proteção  das pessoas no trabalho com as necessidades do mundo actual. Estamos em plena pandemia e continuamos sem reforçar condignamente o nosso SNS e sem romper com a lógica mercantilista  que nos une à Saúde privada, onde 41% do orçamento da Saúde é vomitado nas PPP’s. Nuno Crato já abandonou o Ministério da Educação há bom tempo, mas continuamos com o mesmo  paradigma em vigência e a única coisa que mudou foram, a bem dizer, os exames. A banca continua em roda livre porque não queremos o Estado a comandá-la, vai de retro Satanás, mas desde que pague os desvarios disso resultantes, está tudo bem. Da mesma forma, sabemos quais os sectores da vida em sociedade foram severamente condicionados pelas privatizações, mas continuamos dispostos a bancá-las em acordos ruinosos e permitindo a degeneração das condições de vida das pessoas, em vez de as recuperar para o domínio estatal.  

Ao mesmo tempo, para equilibrar as contas severamente desproporcionais, afogamos as pessoas com impostos que sufocam o nosso poder de compra e qualquer tipo de iniciativa privada, enquanto permitimos que os mais ricos recorram a offshores e engenharia fiscal, e assim vamos empobrecendo cada vez mais a produção nacional e a nossa sustentabilidade financeira.  

O ódio é um sentimento primário, fácil de instigar. Por isso é tão importante perceber que ele se semeia nas populações empobrecidas e embrutecidas, cada vez mais acéfalas e subservientes e que, nesse sentido, só é possível combatê-lo dotando as pessoas com, por um lado, mais ferramentas que permitam descodificar esta realidade pós-moderna tão densa, e por outro, com melhores condições de vida. Sim, urge combater o fascismo. A parte mais difícil desse combate, e que poucos parecem dispostos a assumir, é derrubar as forças que travam estas duas necessidades essenciais. Contra essas forças de bloqueio, só o pensamento organizado e verdadeiramente revolucionário  e progressista pode unir as pessoas em torno de objectivos comuns. Esse é combate que importa travar. Votar em consciência contra a ascensão do fascismo é importante, mas para isso, há que saber quem representa o quê: quem está disposto a encetar esforços para combater as causas sistémicas da ascensão destes movimentos e quem está apenas a tentar equilibrar a balança endemicamente desequilibrada pelo privilégio.

Crónica de Marta Moreira
A Marta é professora do ensino artístico especializado da música, faz parte da direção artística da Plataforma do Pandemónio e é também artista multidisciplinar e escritora


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