O extremismo tectónico antes de Le Pen

por Cronista convidado,    28 Novembro, 2020
O extremismo tectónico antes de Le Pen
Fotografia de Selma Thörnblom / Unsplash
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A pátria do Iluminismo está hoje mergulhada numa grande sombra sonora. No centro da Europa e do mundo. A França. Pátria secular confundida historicamente com a noção de liberdade. Voltaire e tantos outros. Sartre, Rousseau, Joana d’Arc e tantos outros. Mergulhada numa profunda crise política, social e identitária, a França pede hoje para ser salva.

No passado dia 24 de Novembro, foi aprovada na assembleia nacional francesa uma proposta legislativa intitulada de lei de segurança global. A proposta, apresentada pelo movimento partidário République en Marche do chefe de estado Emmanuel Macron, junto com o Agir, seu aliado de centro direita, foi aprovada com 388 votos a favor, 104 contra e 66 abstenções. O documento lei que já levou milhares de franceses a protestar nas ruas em pleno confinamento nacional, não só atenta contra liberdades e direitos constitucionais dos cidadãos, como agudiza um flagelo cada vez mais patente na sociedade francesa, o da violência policial.   

A dor, o gás lacrimogéneo, e até o sangue são elementos cada vez mais patentes no quadro público gaulês. O assunto é regularmente debatido na ordem pública. As liberdades estreitam ao ritmo de um autoritarismo estatal galopante. Le Pen chegou muito antes do que se temia. Tem o rosto de um pequeno Napoleão sem o galope de um cavalo. Europeísta convicto e agregador no plano externo, Macron consegue assim adormecer a Europa e o mundo que tardam em inaugurar uma agenda setting pós-covid. Entretanto a democracia debota paulatinamente no seio da Europa. O estado liderado por Emmanuel Macron coloca em prática o afunilamento do Ser em França, lugar geográfico outrora citoplásmico. A América ocupa o espaço geométrico da nossa angústia, a América ensina-nos a discernir, a desejar o progresso e a justiça igualitária, mostrando-nos de tempos a tempos o vil, o aberrante. O que nos escapa ou que parecemos ignorar é que aqui ao lado, numa das pátrias fundadoras da actual União Europeia, o vil e o aberrante amontoam-se quotidianamente. Explodem em duo através de imagens de mulheres, de idosos ou de portadores de deficiência física que são igual e gratuitamente violentados. Imagens que o executivo francês quer agora suprimir, afastando-as do conhecimento público. Quem desobedecer, poderá até ser preso. Jornalistas e fotógrafos de imprensa não foram originalmente incluídos em qualquer regime de excepção. Alguns já foram inclusivamente detidos. Muitos outros remetidos a cordões de segurança com avisos de detenção caso acabem por filmar e divulgar imagens. Tal aconteceu, por exemplo, no último sábado dia 21 de Novembro em Paris, numa manifestação que teve lugar na Praça do Trocadero.  

O quadro trágico agudiza-se mas não é novo. Em Março de 2019 foi a própria ONU a recriminar o estado francês pelo uso excessivo de força aquando o movimento dos coletes amarelos. Seguiram-se condenações por parte de organizações como a Amnistia Internacional, contrastantes com o vazio sonoro adoptado pelos diversos estados europeus e mundiais. Numa das muitas manifestações dos gillets jaunes, Jérôme Rodrigues, conhecido luso-francês associado à mobilização da causa, ficou cego de um olho às mãos da polícia gaulesa, que para além de recorrer excessivamente ao uso de gás lacrimogéneo e de balas de borracha para fazer dispersar manifestantes, é a única na Europa que utiliza granadas aquando os protestos. Em Dezembro do ano passado, um tiro da polícia feriu gravemente o jovem Antoine Boudinet. Antoine, que se encontrava numa manifestação em Bordéus, teve que amputar parte do braço direito. Outros foram aqueles que ficaram incapacitados. No total, milhares de feridos foram contabilizados desde o início dos gillets jaunes. Muitos continuam a ser identificados antes das manifestações, ficando de certo modo, conotados pelos dispositivos policias.       

Mais recentemente, Michel Zecler, produtor musical residente em Paris, foi surpreendido por um grupo de três polícias à porta dos estúdios onde trabalha. De seguida, foi barbaramente agredido durante vários minutos no interior do local. Segundo o relatório dos agentes, mais tarde desmentido pela procuradoria de Paris, Michel que na verdade se encontrava sem máscara, terá reagido de forma violenta e intempestiva à abordagem policial. As imagens que se reproduziram nos canais noticiosos, foram condenadas pelo chefe da nação, Emmanuel Macron. O mesmo que abre caminho a uma falsa sensação de imputabilidade nas autoridades francesas ao reforçar de forma desmesurada as suas formas de actuação e poder. O mesmo que quer afastar a realidade, a brutalidade da imagem do domínio público.  

Outra das medidas propostas na lei de segurança global é o recurso a drones que servirão para vigiar grandes manifestações nacionais, podendo facilmente identificar manifestantes que serão igualmente interligados numa grande base de dados. Não é difícil adivinhar um ulterior recurso à inteligência artificial para tornar estes mecanismos ainda mais eficazes e totalizantes, violando sem mediação princípios filosóficos e existenciais. Se em França se faz porque é que aqui não se pode fazer? Não precisamos de muito para tecer sílabas futuristas como se o quadro de acontecimentos não fosse suficientemente hediondo, na passada segunda-feira, cerca de quatro centenas de migrantes que se encontravam simbolicamente acampados na Praça da República, símbolo geográfico do lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” foram escorraçados por um forte dispositivo policial que terá ainda agredido jornalistas e activistas e recorrido ao habitual gás lacrimogéneo, desmobilizando o grupo de pessoas que contou ainda com a presença de advogados e eleitos políticos. Os migrantes, maioritariamente afegãos e africanos, tinham requerido asilo ao estado desde o recente levantamento de um acampamento em Saint-Denis, na periferia de Paris. As imagens, rapidamente difundidas, revoltaram uma vez mais a população. 

Não é só França que está em risco. Somos todos nós. O mundo ligado em rede nem sempre desemboca num grito. Se o relato é importante, a análise é soberana. Só ela pode formar a razão, sustentando o corpo crítico, uma sociedade civil que escrutina, age e delibera. Não sei para onde caminha a França. Sei que precisa que alguém a salve.                       

Artigo de Augusto António Cabrita                                
O Augusto é licenciado em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL e um amante das estruturas culturais e reflexivas que divergem do grande dispositivo de massas.

                      

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