O efémero da beleza e a evocação da memória na poesia de Konstantinos Kaváfis

por Miguel Fernandes Duarte,    15 Janeiro, 2018
O efémero da beleza e a evocação da memória na poesia de Konstantinos Kaváfis
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Konstantinos Kaváfis é seguramente um dos nomes grandes da poesia grega moderna, o que se torna ainda mais particular por ter nascido, e vivido praticamente toda a sua vida, em Alexandria. Em 1863, numa altura em que a metrópole egípcia pertencia ainda ao enorme Império Otomano, Kaváfis nasceu filho de pais gregos, o pai um próspero mercador que acabou por falecer subitamente quando o poeta era ainda criança. Com a situação financeira subitamente tornada precária, a família viu-se necessitada a emigrar para Liverpool, onde esteve durante sete anos, regressando novamente a Alexandria em 1877, de onde foi novamente obrigada a sair em 1882, fruto da guerra Anglo-egípcia, desta feita para Constantinopla. Quando regressou à sua cidade natal, três anos mais tarde, Kaváfis de lá não saiu mais.

Esta Alexandria, obsessão de Kaváfis, marca toda a extensão da sua obra, onde temos, coexistindo, a Alexandria mítica do período helenista de 200 a.C., e a sensual e cosmopolita Alexandria do início do séc. XX, repleta de bares e bordéis, cheia de belos rapazes pelos quais Kaváfis se deixava enfeitiçar, para depois os lembrar, mais tarde, na sua beleza efémera. A palavra efebo é, aliás, aquela que provavelmente povoa em maior número os 154 poemas que deixou publicados, todos eles escritos já após Kaváfis contar os quarenta anos, quando rejeita tudo o que tinha escrito anteriormente e se dedica a escrever os únicos poemas que considerou dignos desse nome, distribuindo-os em folhetins ao seu círculo de amigos, o cânone completo apenas publicado postumamente.

Não existem em Portugal, até ao momento, traduções de todos estes 154 poemas de Kaváfis. No final de 2017, no entanto, a editora Flop presenteou-nos com o maior conjunto recolhido até hoje. 145 Poemas, de Konstantinos Kaváfis, em tradução de Manuel Resende, um dos maiores conhecedores de poesia grega moderna, é um belo exemplar, em todas as acessões – desde a magnifica capa, em azul garrido (que se estende também à cor na qual o texto no interior é impresso), aos óptimos prefácio e notas do tradutor (e poeta) que aparenta ter desempenhado o seu papel no melhor das suas capacidades, só não chegando às traduções de todos os 154 poemas porque, confessa o próprio no prefácio da edição, em 9 dos poemas não achou as suas traduções dignas dos próprios.

Não foi o primeiro a tentá-lo, no entanto. Os poemas de Kaváfis já tinham anteriormente dado edições em português, ainda que com um menor número de poemas traduzidos. Jorge de Sena, em edição lançada em 1970, traduziu noventa, a partir do inglês, e mais recentemente, Nikos Pratsinis e Joaquim Manuel Magalhães traduziram outros tantos (e neste caso já directamente do grego), numa edição com o nome Os Poemas, que a Relógio d’Água lançou em 1995.

Konstantinos Kaváfis

Sendo uma poesia que diversas vezes se move pelos domínios da prosa, parca em floreados e metáforas, torna-se muito fácil cair na tentação de a considerar de fácil tradução, independentemente das diferenças entre o português e o grego. Mas, mesmo com um recurso à rima muito pouco frequente, essa mesma escassez acaba por atribuir aos poemas um ritmo muito particular, com constantes variações de métrica e de cadência, até pelos poemas em que usa o seu “tango”, como lhe apelidou o também poeta Giórgos Seféris, uma composição onde, como explica Manuel Resende no prefácio, “o verso é partido a meio (facto assinalado por um espaço em branco maior no hemistíquio) sendo ambas as metades fortemente ritmadas por três tempos fortes.” Deste estilo é exemplo o poema 96, Antes Que o Tempo os Mudasse, retrato do amor jovem impedido, do fotograma da memória no futuro propagado “antes que os mudasse o tempo”:

“Foi muita a dor sentida         com a separação.
Eles não a queriam;         eram as circunstâncias.
Vitais necessidades         obrigaram um deles
a ir-se para longe –         Nova Iorque ou Canadá.
Seu amor, é bem certo,         não era o mesmo de antes;
tinha-se ido esfriando         pouco a pouco a atracção,
tinha-se ido esfriando         muito a mútua atracção.
Contudo, separar-se,         eles não o queriam.
Eram as circunstâncias. –         Ou talvez como artista
se mostrara o Destino         separando-os antes que
morresse o sentimento,         antes que os mudasse o tempo.
Um deles para o outro         será como foi sempre,
o formoso rapaz         de vinte e quatro anos.”

À época não era vulgar nem o estilo, nem os temas sobre os quais Kaváfis se debruçou nas várias facetas que exibe ao longo destes 145 poemas, mais não fosse pelo seu carácter homossexual abertamente assumido, ainda que seja importante relembrar que a intimidade do que escrevia era dirigida para o seu círculo de amigos mais próximos; pouco mais gente a eles tinha acesso. Como já referido, junto aos efebos, Alexandria é musa do poeta, sendo impossível distanciá-lo tanto da cidade como do mundo helénico, das influências da cultura e civilização grega em praticamente tudo o que nos rodeia. Nos seus poemas vemos as grandes batalhas de Esparta, ou de Alexandre, o Grande, tal como, ao mesmo tempo, não podemos deixar de ver a perfeição da estatuária helénica, com inúmeras referências não só à escultura grega como à perfeição estética a ela associada. Em À Entrada do Café, poema 34:

“Vi então aquele formoso corpo que parecia
tê-lo criado Eros do fundo da sua experiência,
modelando com deleite a simetria dos seus membros;
erguendo, escultural, seu alto talhe;”

Abertamente homossexual, Kaváfis aborda com despudor a paixão. Mas é uma paixão que vive do efémero, de um fogaz que, como pode ser visto no poema Antes Que o Tempo os Mudasse, acima transcito, se propaga até muito tempo depois. Angústia novamente expressa em Cinzentos, o poema 64, desta vez numa necessidade de impedir que a memória se apague:

“Memória minha, guarda-os tu como eram.
E quanto do meu amor possas, memória,
quanto possas, traz-mo de novo esta noite.”

A poesia Kaváfis é sempre uma de distanciamento e evocação, um olhar sobre a juventude a partir da velhice, um foco nos detalhes que a memória reteve, um olhar para o passado tanto quando os poemas tratam a intimidade como quando pegam na antiguidade clássica. Aí vemos o outro lado de Kaváfis, o do poeta-historiador, debruçando-se sempre sobre períodos históricos de declínio ou decadência, onde, podendo até estar a festejar-se um feito de grandeza, está subjacente a decadência por vir. É o lado trágico da vida que Kaváfis nos traz através dos episódios que faz ressoar pelo tempo. Em 200 A.C, poema 136, louvam-se, com um tom cuja ironia provém de se saber o seu fim, os feitos de Alexandre, o Grande, as batalhas vencidas, em tempos em que o helenismo se apresentava no seu auge. Em Embaixadores de Alexandria, poema 44, fala-se em como, confiantes da sua posição superior, os dois reis Ptolomeus, Ptolomeu VI Filométor e Ptolomeu Evergetes, dispensam tirar o oráculo, ignorando “que ontem graves novas chegaram aos embaixadores. / O oráculo fora emitido em Roma: ali se tiraram as sortes.” A chegada do império romano sobre a Grécia estava a chegar e “só os sábios / apercebem o que se avizinha”, como afirma no terceiro poema, Sabem os Sábios o que se Avizinha.

De Kaváfis também só os sábios pareciam ter entrevisto o seu talento em vida, já que Kaváfis, que há muitos anos não visitava a Grécia e passara toda a sua vida trabalhando no Ministério Egípcio das Obras Públicas, morreu de cancro da laringe em 1933, aos setenta anos, com a sua reputação enquanto poeta ainda obscura, partilhando o caminho de tantos outros que só na posteridade alcançaram o relevo que teriam certamente gostado de ter em vida. Fado inglório para alguém que toca tão fundo.

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