O dia em que ficámos burros. Ou a televisão tradicional morreu mesmo?

por João Pinho,    11 Março, 2019
O dia em que ficámos burros. Ou a televisão tradicional morreu mesmo?
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O dia em que ficámos burros é difícil de precisar e, talvez, seja só puro pessimismo da minha parte que o digo, mas acredito que já chegou. E quando digo “nós” refiro-me a nós como sociedade — obviamente sei que existem pessoas inteligentes e críticas, conheço algumas. Porém, é impossível ficar-se não estupefacto quando vejo que a nossa televisão de sinal aberto está a acelerar o processo de queda para o vazio, onde os programas se resumem ao puro entretenimento estúpido que não acrescenta ou valores ou conhecimento e, pior, puxa pelas nossas emoções mais básicas que, como já dizia Yuval Noah Harari no seu livro “Sapiens”, são necessários para a solidificação de uma sociedade cada vez maior e mais complexa: o mexerico, a traição, o amor, a sexualidade.

Ora, os dois canais privados principais a nível nacional, TVI e SIC, lançaram mais um teste às suas audiências que, penso não ser uma extrapolação grave, correspondem a uma grande percentagem do país, incluindo uma fatia jovem que ainda consome televisão e este tipo de programas. Depois de programas tão nossos amados e conhecidos como o, “Big Brother”, “Love on Top”, “Casa dos Segredos”, “Quinta das Celebridades” ou, um mais polémico pelas devidas razões, “Super Nanny”, estes canais decidiram saudar-nos calorosamente com mais dois programas — do pior que se faz lá fora —, onde se tenta alcançar um dos maiores e mais bonitos mitos da vida: o amor à primeira vista.

Um dos grandes problemas deste tipo de programas e, acima de tudo, das opções dos canais de televisão é que estão, como sempre o fizeram de forma consciente ou inconsciente, a concretizar uma excelente lavagem cerebral aos telespectadores. Penso que não é uma novidade para ninguém, mas vale sempre a pena repetir: são as marcas que influenciam realmente o consumidor e os seus hábitos, não o contrário. Como sociedade estamos aos poucos a ficar cada vez mais limitados em termos intelectuais e já não criticamos o objectivo das coisas. O que retiramos destes produtos? Nada, para além de descobrimos — já não o devíamos saber?! — que existem pessoas que ou estão dispostas a tornarem-se no próprio produto para encontrarem o amor ou fazem tudo para terem a uma dezena de minutos de relativa fama. Mas estas duas opções não me interessam, porque quando alguém se quer atirar para o mundo da futilidade pouco posso fazer para ajudar. O que me interessa, sim, é que isto se trata de mais um produto que nos coloca numa bolha, onde já não queremos ou já não conseguimos ver o que nos rodeia. Quem chega a casa no final de um dia cansativo de oito ou mais horas de trabalho e quer ver este programa pouco quer saber, por exemplo, das alterações climáticas. Matou-se a trabalhar para poder usufruir de algo que não as testa em nenhum parâmetro. Da mesma forma, se quisermos ver algum filme interessante durante o fim de semana, nos quatro principais canais, temos poucas opções senão mesmo a RTP1 e RTP2, porque os outros decidiram, num país tão pequeno como o nosso, criar uma festa por cada vila ou cidade do país, uma verdadeira ressaca semanal.

O desespero dos canais de televisão surgiu após o surgimento de plataformas como o Youtube ou a Netflix. E o desespero normalmente nunca leva a decisões que tenham em conta o beneficia da maioria em detrimento do prejuízo pessoal. Desta forma, em termos económicos, tudo vale, inclusive investir cada vez mais em programas que falem do amor ou da sensualidade — o “SuperNanny” foi um erro de casting, pelo menos no nosso país —, tanto com celebridades como com o cidadão comum. Isso faz com que a diversidade seja escassa e as gerações seguintes só conheçam e sejam educadas com este tipo de programas. O produto é óbvio, a fórmula também, a repetição impossível de não reparar e, mesmo assim, é o que vende, por mais que me irrite enquanto escrevo esta crónica. Lemos cada vez menos livros ou jornais, vemos cada vez menos filmes ou reportagens, estamos cada vez menos interessados com o que se passa no nosso país (já não falo além fronteiras), já não sabemos discutir um assunto ou escrever sobre o mesmo ou, então, colocamos em causa a ciência, sendo esta última talvez a vaga mais perigosa. Mas eu também percebo (volto a repetir), depois de um dia trabalhoso num trabalho que não gostamos onde o nosso salário ou carreira permanece o mesmo durante anos, faz com que queiramos algo em que só tenhamos de utilizar uma percentagem ínfima do nosso cérebro, enquanto comemos um hambúrguer aquecido no micro-ondas. Mas este, como qualquer músculo, se não for estimulado, passado algum tempo, fica frouxo e, quando precisarmos dele numa emergência, não acompanhará o nosso desespero.

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