O cinema com o toque de Jan Švankmajer

por Isabel Sá,    24 Agosto, 2016
O cinema com o toque de Jan Švankmajer
“Dimensions of Dialogue” (1982), filme de Jan Švankmajer
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O cinema de Švankmajer enriquece o real, numa ligação que André Breton, ilustre surrealista francês, poderia descrever com a própria explicação do surrealismo, como “um fio condutor entre os dois mundos distintos do acordado e do adormecido, interior e exterior, razão e loucura”. A filmografia do realizador tem a força expressiva necessária para reviver o pensamento analógico, num mundo em que o visual impera e sempre o fez, Jan Švankmajer imprime o toque no visual, associando o sentido base que nos faz humanos e nos dá uma existência corpórea com o sentido que nos permite fruir do cinema e pensar visualmente sobre ele.

Unless we again begin to tell fairy stories and ghost stories at night before going to sleep and recounting our dreams upon waking, nothing more is to be expected of our Western civilisation.

Jan Švankmajer nasceu a 4 de Setembro de 1934 em Praga. Desde cedo fomentou um interesse pelo teatro e marioneta, o que o levou a estudar em Praga na Escola de Artes Aplicadas, até à sua ida para o departamento de marionetes da cidade. Foi através deste interesse que depois seguiu para o mundo do cinema. Cresceu nos anos totalitários da Checoslováquia, onde a política marxista-leninista ditava todos os aspectos da sociedade checa, através de interrogações, intimidações e a vigilância da policia secreta. Uma das interessantes nuances kafkianas do regime supunha o conhecimento de uma lei não escrita, comportamentos e subornos necessários para a sobrevivência, mas que, como faca de dois gumes, poderiam levar ao encarceramento do (não) cidadão, se não utilizados com astúcia. Como ajuda cronológica em 1950, Joseph Stalin dirigia purgas que levaram à execução de sensivelmente 180 pessoas, que foram decretadas culpadas ainda antes do seu julgamento ser levado a cabo, ensaiando mesmo o seu testemunho.

O clima era aterrador, a censura de ferro e a cultura checoslovaca quase inexistente e a pouca que era existente não espelhava o verdadeiro viver dos cidadãos, tendo isto tido um efeito impactante e duradouro no realizador, que agora foca a liberdade como o seu tema essencial e a libertação através do inconformismo e indolência. Uma curta metragem que espelha bem este sentimento revolucionário e incendiário de Švankmajer é A Morte do Estalinismo em Bohemia (Konec Stalinismu V Cechach), de 1990, que disseca, literalmente, Stalin. Apesar de se viverem outros tempos, o realizador continua a tecer amargas criticas políticas, agora ao neoliberalismo e ao mercado capitalista, que julga ser uma nova forma de limitação da arte. Enquanto a censura totalitária é óbvia, a censura capital abafa os trabalhos, porque estes não correspondem ao interesse público e como tal não tem lugar no mercado, especialmente um nicho como o do surrealismo.

O corpo artístico de Jan tem um carácter heterogéneo, fruto das técnicas distintas que emprega, causando um sentimento tão soturno, repulsivo e grotesco quanto bem humorado. Apesar da marca autoral, as técnicas utilizadas são diversas, sendo a mais imediata a animação stop motion, uma técnica que recorre à fotografia para criar a ilusão de movimento, especialmente em objectos. O inanimado ganha uma vida tangível, uma vida verdadeira para além do carácter emocional que já transporta, que ganhou através do nosso materialismo e através da simbologia que atribuímos às coisas. Curioso é como trata também o homem com a mesma técnica, fazendo por vezes precisamente o contrário e objectificando-o. Exemplo interessante disso é a curta-metragem Food (Jídlo), de 1993, que divida pelas três refeições do dia, transforma os homens em máquinas de serviço que dispensam o pequeno almoço, que depois de utilizados como instrumento retomam à sua existência normal. Švankmajer poetiza o objecto, cria uma experiência sinestésica e leva o público a reencontrar-se com o as suas infinitas possibilidades. Uma outra curta metragem sua que foi particularmente aclamada, com um urso de ouro por exemplo, foi Dimensões do Diálogo (Možnosti dialogu) de 1982, também tripartida em: discussão exaustiva, diálogo apaixonado e conversa factual. Sendo o segundo provavelmente o que reuniu mais mediatização, um homem e uma mulher moldados em barro, que apaixonados se fundem no puro desejo, num só corpo.

No entanto, o trabalho de Jan não se resume a curtas, tendo sete filmes, sendo Insects, baseado na peça de Karel Capek, o seu último, em que as personagens encarnam autênticos insetos alucinantes. Aliás, são, elas próprias, na forma dos próprios atores, as protagonistas, abrindo espaço para a realidade dos seus sonhos e para um escrutinar do processo criativo que as conduz a este filme. Um dos seus trabalhos mais discutidos é a sua interpretação do famoso conto de Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, imortalizada pela versão bastante amena e contida da Disney. A versão de Švankmajer abraça o surreal do conto sem tentar racionalizá-lo e contê-lo, não cortando nas brincadeiras linguísticas e nos pormenores que foram mais suavizados pelas outras versões que, ainda que dirigidas ao público infantil, eram realmente “acriançadas” num sentido pejorativo, que domina hoje o entretenimento para as crianças. Como se pode imaginar, Alice reuniu opiniões muito divergentes, desde um aplauso pela ruptura com o mundo de fantasia estereotipado, a cinemas a marcar o filme como não próprio para crianças por este ser “amaldiçoado em vez de fantástico” ou “um pesadelo em vez de um sonho”.

Como surrealista que é, entra mais profundamente malhas da realidade, tão fundo que acaba por mergulhar num universo paralelo, que, na verdade, não está assim tão isolado quanto aparenta. Sim há um recurso ao absurdo, principalmente de forma humorística, mas, a partir do momento que algo se distancia tanto do usual, presta-se à contemplação, a audiência é absorvida, deixa de ser passiva e é obrigada a mergulhar também ela no táctil, hábito raro numa altura em que o trabalho artístico perdeu a sua distância, vitima da sua aproximação e reprodução massiva.

O mundo não é objectivo e, se o for não tem que ser, pois pode ser interpretado activamente por cada um de nós, por cada homem, cada mulher. O olhar de Švankmajer tem algo de libertário numa cultura em que a tecnologia progride a uma velocidade estonteante, erguendo a visão ao estatuto do sentido intelectual, negligenciando a base e “verdade” primitiva que é o toque.

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