O Chile despertou. E nós?

por Comunidade Cultura e Arte,    27 Outubro, 2019
O Chile despertou. E nós?
Chile (2019) / Fotografia de Ana Catarina Martins
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Cheguei ao Chile há três meses, para uma experiência com prazo de validade – um programa de intercâmbio que me deu a oportunidade de estudar um semestre em Santiago. Não sabia que a Primavera me traria um valioso tumulto para a eternidade.

Escrevo isto na primeira noite em que, depois de começar a revolução, não há toque de queda. Ouvem-se os carros, as pessoas na rua com o cacerolazo – tudo tão mais reconfortante que o silêncio ensurdecedor do vazio onde ecoavam os helicópteros em circuitos incessantes.

Fotografia de Ana Catarina Martins

Há uma semana que o bater da panela enche os dias e não tive vontade que se calassem nunca.

Há uma semana não se instalou o caos, o caos está instalado há 30 anos, apenas saiu à rua. O estado de emergência, decretado pelo presidente Sebastián Piñera numa triste manobra política, não veio dominar o caos, o estado de emergência veio aumentá-lo – pôs militares nas ruas, a reprimir o direito à manifestação pacífica, a restringir liberdades, a proliferar o medo. Soubessem eles a coragem do seu próprio povo, sabiam que o medo derrete em 17 anos de ditadura. Os chilenos, em 1988, tiveram a coragem de votar “NO” ao regime ditatorial, uma viagem de ida, sem regresso, pela democracia. Ainda assim, vivem sob uma constituição instalada pelo ditador Augusto Pinochet, que dificulta que se aprovem mudanças estruturais.

Fotografia de Ana Catarina Martins

O Chile é um país marcado por fortes desigualdades sociais, evidentes no acesso a dignas condições de saúde e educação, dificultadas pela privatização de bens básicos, como a água e a eletricidade. A revolta começou por ser estudantil, porque a classe trabalhadora não podia expor-se ao risco de perder o emprego. Mas o Chile cansou-se dessa forma de domínio e saiu à rua para gritar. Ontem, em Santiago, uma marcha contou com um milhão e duzentas mil pessoas. Aquilo que podia ser a luta de uma classe isolada, passou a ser transversal ao país inteiro – não só se pedem mais dignas condições de vida, como se exige que se ponha fim ao escandaloso atropelo dos direitos humanos que se tem visto no decorrer da última semana. 

Fotografia de Ana Catarina Martins

Abundam os vídeos da violência militar sobre os manifestantes, os anúncios de pessoas desaparecidas e detidas sem razão. Agora, 1051 pessoas feridas, 3162 presas. Os media anunciam 19 mortos, a verdade conta, pelo menos, 42. Os vídeos partilhados nas redes sociais, a única forma de divulgar informação mais real, são descontextualizados, assustadores, tornando difícil não sucumbir ao pânico. As manifestações pacíficas são rodeadas, encurraladas, violentadas por tanques e militares de arma em riste. O povo não cede, roga, de mãos no ar, “SIN VIOLENCIA!” enquanto um tanque avança e lhe atira água e gás lacrimogéneo. O povo não desiste. Exige saber a verdade sobre as detenções, exige investigações sobre as mortes e as alegações de tortura. Exige que sejam retirados os militares das ruas. Exige a renúncia de um presidente surdo às suas exigências. Exige mais, exige melhor.

Fotografia de Ana Catarina Martins

Não acredito em nada se não na coragem deste povo. Resiliente, lutador. Eles não têm medo, mas eu tenho. Senti-o a primeira vez que apontaram uma arma à minha amiga. Depois, quando me disseram para ter sempre reservas de comida e água em casa, porque podíamos perder o acesso a supermercados. Mais tarde, quando me pediram para manter a calma e não desafiar nunca as autoridades nem me atrever a sair depois do recolher obrigatório. Outra vez, quando liguei a televisão e não fiquei mais informada. De novo, quando circularam possíveis locais de tortura de detidos. Quando me encolhi ao som de cada estrondo – tiro ou petardo? Quando ouvi um chileno dizer “só vi isto no tempo da ditadura.” Cada vez que me disseram, em voz sôfrega, “Cuídate mucho!”. Quando percebi que o mundo não sabia o que se passava à porta da minha casa. Tive um medo de enlaçar o estômago e entalar a garganta mas nunca por mim – por este país, pelo seu direito a viver em paz, em liberdade, com dignidade.

Fotografia de Ana Catarina Martins

Michelle Bachelet, ex-presidente, sabe cantar a Grândola. A dez mil quilómetros de distância, existe neste país quem saiba cantar a Grândola. E nós, a dez mil quilómetros, vamos continuar a fechar os olhos e a permitir que isto continue? E nós, aqui ao lado, em todo o lado, para todo o lado, vamos continuar a evitar olhar para a democracia como uma luta universal? O Chile despertou – e nós?

Chile, se eu pudesse, enchia de cravos todas as tuas pistolas. Chile, não estamos em guerra, estamos unidos. Chile, gostava de te segredar ao ouvido os mesmos versos que te fizeram vencer uma vez: “Chile, la alegria ya viene”.

Texto de Daniela Frias Guerra
A Daniela é estudante de arquitectura na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto
Fotografias de Ana Catarina Martins
A Ana é estudante de Arquitectura no Instituto Superior Técnico em Lisboa

Fotografia de Ana Catarina Martins

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