“Notes on an Appearance”: notas para quê?

por Diogo Lucena e Vale,    2 Outubro, 2018
“Notes on an Appearance”: notas para quê?
“Notes on an Appearance”, de Ricky D’Ambrose
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O percurso dos seus filmes no circuito de festivais pode dizer-nos muito sobre um realizador; no caso de Ricky D’Ambrose, um olhar sobre os locais de estreia dos seus dois últimos filmes – New Directors/ New films para Spiral Jetty (2017) e Berlinale Forum para este seu último Notes on an Appearance (2018) – indiciam qualquer coisa de único no seu olhar. De facto, embora possamos encontrar nos seus filmes algumas das suas referências (Straub vem de imediato à memória), D’Ambrose conjuga-as com uma sensibilidade muito própria e contemporânea.

“Notes on an Appearance”, de Ricky D’Ambrose

Notes on an Appearance foca-se num jovem nova-iorquino, David, interpretado por Bingham Bryant, repetente de Spiral Jetty, que desaparece, deixando o filme órfão de protagonista, ao estilo de Psycho (1960), pouco tempo depois do seu regresso de uma viagem a Milão. Para trás deixa cadernos, livros, um emprego, amigos, conhecidos – detalhes de uma vida normal. Estes constituem o combustível do filme de ora em diante, quando um amigo de David, Todd – interpretado por Keith Poulson, habitual dos filmes de Alex Ross Perry -, se propõe a encontrá-lo, e, como tal, para o efeito de os abranger a todos, D’Ambrose serve-se de uma omnivoria visual que utiliza indiferenciadamente tanto a concreção da captura do movimento de um corpo num espaço como a abstração cartográfica da representação de um espaço físico, tanto a objetividade de uma chávena de café como o simbolismo da capa de um livro, tanto a palavra falada como a escrita. No campo formal, a sequência de planos fixos cuidados é pontualmente interrompida por imagens VHS caóticas no seu movimento e de, nas palavras do protagonista, “conteúdo indistinto”.

“Notes on an Appearance”, de Ricky D’Ambrose

Sobre esta indiferença perante as formas de representação visual paira uma ideia de vazio, de nada. Em última análise, estas informações de pouco ou nada servem e vão simplesmente acumulando-se, tal como David compulsivamente acumulava anotações no seu caderno. Para esta tese contribuem as constantes referências a um fictício filósofo niilista que propõe a destruição da sociedade como um todo e uma conversa entre Todd e uma mulher que lhe diz sobre o desaparecimento de David: “Não sei porque estamos a falar sobre isto. Para mim é um não-evento.”.

Poderíamos com base nisto ver em Notes on an Appearance uma posição niilista sobre a vida e ficar por aqui, mas esta ideia de nada parece recair em particular sobre um determinado grupo de pessoas. David e Todd referem a dada altura terem conhecido-se em Bard, uma célebre universidade privada nos EUA, e como percebemos pelos seus hábitos e trabalho pertencem à elite cultural e no entanto aparentam levar vidas diletantes. Uma cena que retrata um colóquio sobre tradução revela-se particularmente incisiva: vemos uma demorosa introdução dos oradores, assim como as dúvidas levantadas pelo público, mas não as suas intervenções, que foram retiradas como se de nada se tratasse. Ricky D’Ambrose faz ele próprio parte desta intelligentsia que critica, pelo que consegue excisar os pequenos rituais próprios deste nicho social e colocá-los no seu filme, resultando numa observação não só cómica, como perspicaz.

Informação aleatória na idade contemporânea parece então ser o tema de Notes on na Appearance. Todavia, desta contemporaneidade poucos sinais há: telemóveis, computadores ou qualquer indicação da presença de um sinal Wi-fi estão completamente ausentes da obra, gerando a dúvida de esta escolha ter raiz num ideal estético reminiscente de filmes do passado ou, por outro lado, pretender sugerir que a perda de relevância da informação não se baseia unicamente na abundância de produção permitida – e incentivada – pelas TIC.

Seja como for, o facto de, como já se referiu, D’Ambrose pertencer a uma elite cultural torna relevante que, ao mesmo tempo que faz o seu julgamento, faça com que o seu próprio filme reflita o mesmo modo de produção de informação, pois demonstra uma capacidade de autocrítica que nem todos têm, o que levanta a questão: não faltava isso ao presente texto?

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