NOS Primavera Sound (dia 1): surpresas de um festival variado

por Bernardo Crastes,    7 Junho, 2019
NOS Primavera Sound (dia 1): surpresas de um festival variado
Fotografia de Hugo Lima
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Para o primeiro dia do NOS Primavera Sound, o já emblemático festival de música do Porto, a cidade foi presenteada com chuva torrencial, alternada com períodos de sol. Este clima confundia os festivaleiros que até ao Parque da Cidade se deslocaram para assistir a alguns dos nomes mais celebrados pela crítica musical nos últimos anos. Talvez S. Pedro, à semelhança de muitos comentadores da Internet, não tenha ficado satisfeito com o cartaz eclético apresentado pela organização. Certo é que o alinhamento deste primeiro dia apresentou opções muito variadas. A música, tal como a Primavera, tem destas coisas; não pode estar sempre sol, assim como não podemos ter só rock ou só pop.

Fotografia de Hugo Lima

À chegada ao recinto, o sol dava um ar da sua graça, como que para convidar as pessoas a sair de casa. Quem o fez, provavelmente terá visto Christina Rosenvinge a levar o seu rock aguerrido ao palco NOS. A veterana madrilena, recentemente agraciada com o Prémio Nacional de Música, em Espanha, apresentou maioritariamente canções do seu mais recente álbum, Un Hombre Rubio. Estas confiam muito na distorção da guitarra eléctrica e em toques de sintetizador característicos do rock espanhol. O público não reage muito efusivamente, preferindo antes deixar-se levar de uma forma despreocupada ao sabor da música, que acompanhava bem os raios de sol vespertinos. A artista capta mais a atenção perto do final do concerto, largando a guitarra e assumindo-se como frontwoman cheia de ginga para “Alguien Tendrá la Culpa”. A última música é sobre um encontro fortuito com “a senhora cujo nome não deve ser pronunciado” — o nome que Christina lhe dá é “La Muy Puta”.

Fotografia de Hugo Lima

Para algo completamente diferente, o palco Super Bock recebeu o conjunto Men I Trust, que se mexem em terrenos mais tranquilos. O seu indie pop com alguma sensualidade torna-os numa banda ideal para playlists de Spotify, que os expuseram a uma larga audiência, facto demonstrado pelo entusiasmo do público. As suas canções são caracterizadas pela voz sussurrada de Emma Proulx e pelo baque abafado da bateria, que lhes adiciona algum calor. A banda tocava com um sorriso satisfeito nas suas faces, quase como se estivessem todos a rir de uma piada que o público desconhecia, não coadunando com o comedimento da música. No entanto, essa postura acabou por aligeirar o ambiente, bem adequado ao final de tarde. Ao fim de cerca de 25 minutos e um bom punhado de canções, percebemos que nada mudaria muito por ali e seguimos para outras paragens.

Vamos à ponta oposta do recinto ver Mai Kino, projecto de synthpop da portuguesa Catarina Moreno. O seu concerto atrasou de forma a ocupar o slot que teria pertencido a Ama Lou, não tivesse a artista cancelado devido a problemas vocais. A hora já avançada pedia um pouco mais de energia, não muito patente nos sintetizadores glaciais das canções. A mistura de som favoreceu o baixo, que chegou a ser demasiado pronunciado, fazendo vibrar o ar perto dos nossos ouvidos de forma algo desconfortável. O destaque principal do espectáculo vai para a figura de Catarina, magnífica no seu outfit vermelhão, e para a sua voz aveludada, que merece música mais característica.

Fotografia de Hugo Lima

Voltando ao rock (afinal sempre há rock neste festival, vejam bem), tivemos talvez a única revisitação do festival: os 20 anos de Keep It Like a Secret levaram os Built to Spill a tocá-lo pelo mundo fora. Lançado já no crepúsculo dos anos 90, a sua sonoridade ainda pertence marcadamente a essa década, sendo um indie rock meio distorcido, carregando algum peso do grunge ao vivo, mas sempre com uma alegria ácida da incerteza do final do milénio. Doug Martsch, o único elemento original da banda, estava bastante dedicado às canções que marcaram essa fase dos Built to Spill, como a montagem de clichés “You Were Right” ou “Sidewalk”, mas não criou uma grande conexão com o público. No fim de contas, soou tudo bem, mas sem grande entusiasmo.

A inaugurar o palco Pull&Bear — facilmente o mais bonito do festival — tivemos Miya Folick. A californiana, de origens meio japonesas, meio russas, apresentou o seu primeiro disco, Premonitions, de forma mais bombástica do que esperávamos. Assumindo mais um carisma de líder de banda do que a posição de singer-songwriter, Miya navegou por diferentes estados de espírito com imensa leveza. O público, que não era muito, ficou certamente impressionado pela fantástica voz da artista, cheia de vibrato e com força suficiente para se sobrepor ao concerto de MorMor, que entretanto começou na vizinhança. “Deadbody” é o que Fiona Apple seria se se virasse mais para o rock, a doçura do refrão de “Stock Image” comoveu, e momentos mais agitados, como “Freak Out” ou “Stop Talking”, fizeram o público tirar os pés do chão. Como se não bastasse, Miya ainda teve a coragem de se atirar a covers de Sinead O’Connor e Joni Mitchell. Antes de “Thingamajig”, transmitiu-nos a mensagem já algo repisada de que não nos podemos esquecer que não somos fraudes e que apenas nós sabemos o que fazer das nossas vidas, sem nos deixarmos levar por opiniões externas, mas fê-lo com tamanha genuinidade, que não pudemos deixar de acreditar. Possivelmente o melhor concerto que menos gente viu.

Fotografia de Hugo Lima

MorMor, outra promessa da música indie, carregou o seu concerto de influências dos anos 80. Carregou-o tanto, que acabámos por não ouvir nada de especialmente entusiasmante, antes um chorrilho de reproduções da música dessa década. Não soassem essas reproduções tão bem tecnicamente, teríamos ido para outras paragens, mas a verdade é que houve algo naqueles sintetizadores infecciosos que nos impeliu a ficar, por isso talvez haja mais sob a superfície. O final trouxe o single revelação, “Heaven’s Only Wishful”, altura em que o céu nos decidiu presentear com uma chuvada gloriosa e uma relembrança da fragilidade do ser humano.

Depois veio um dos nomes mais deslocados do alinhamento deste primeiro dia: Danny Brown, cuja voz altamente divisiva não se sobrepôs às batidas divertidas, que cumpriram exactamente o propósito do concerto: pôr o público a mexer. Na frente, moches e saltos comprovaram esse mote. No fim de contas, o espectáculo não foge dos moldes de qualquer outro concerto de hip hop, na medida em que o setting do palco não muda — rapper na frente, DJ na mesa de mistura atrás —, mas a forma como Danny se move freneticamente pelo palco e como cospe as suas rimas de braços arqueados acaba por cativar. Claro que os drops e batidas de canções como “Dip também nos convencem a dançar loucamente.

Fotografia de Hugo Lima

“Welcome back!”, exclamou alguém nas primeiras filas, suficientemente alto para ser ouvido pelos membros da banda. Após um hiato de uma década, os Stereolab deram o seu primeiro concerto na semana passada. O que ontem pudemos assistir no Porto foi o sexto. O glitch electrónico, reminiscente do início de “Brakhage”, soava nas colunas já quinze minutos antes da banda subir ao palco. Não podemos dar certeza de quanta gente estaria ali para os ver (Danny Brown ainda não tinha acabado no palco principal), mas a praça SEAT deveria estar por pouco mais de metade. “Come and Play in the Milky Night” deu o mote de entrada, “Brakhage” começou a desconstrução quase jazzística da banda, e “French Disko” deu o salto para o rock denso entusiasmado que tanto caracterizou o início da sua carreira.

O alinhamento foi semelhante ao dos anteriores concertos deste regresso. Os membros da banda, quase sempre compenetrados, pareciam estar imersos no som: Tim Gane a abanar a cabeça para os lados, como se o stereo de estar parado não lhe bastasse; Laetitia reagindo com sorrisos e discretos movimentos às manifestações vindas da plateia. Cada tema interpretado pelos Stereolab poderia ser considerado um destaque; mas o desenvolvimento progressivo quer de “Metronomic Underground”, quer de “Lo Boob Oscillator” foram tremendos. Nesta última, que encerrou o concerto, o último acorde ocupa de maneira criativa e eufórica os últimos sete minutos da performance; a guitarra de Gane, alternando entre efeitos, e o acompanhamento percussivo de Andy, parecem não ter fim. Eventualmente lá desaparecem, deixando saudade. Faltou a Mary, embora não na memória colectiva dos fãs da banda. No fim, alguém partilhava na desmobilização geral: “fui atirado para há quinze anos atrás, quando os vi em Glastonbury”. Que possa também ser um salto para o futuro; o som dos Stereolab soa mais fresco e pertinente do que nunca.

Ao mesmo tempo, algo que terá sido inesperado para muita gente acontecia no palco Super Bock. Tommy Cash, o rapper estónio (só isto já deve levantar algumas suspeitas), apresentou a sua música hiperactiva com uma forte componente visual. A sua indumentária à início do milénio denota bem o propósito de Tommy: ser um meme. Assim que todos estamos estamos a par disso, torna-se mais fácil divertirmo-nos ao som das suas batidas meio trance, meio hip hop. No entanto, Tommy não é unidimensional, e canções como “Who” (colaboração com Modeselektor, que actuarão no festival no último dia), apresentam alguma crítica social bem-vinda de um jovem revoltado com o sistema educativo e profissional. Foi um concerto divertidíssimo da wild card do dia.

A encosta com vista para o palco NOS encheu-se para assistir ao concerto da cabeça-de-cartaz indisputada do dia: Solange. Como esperado, foi um concerto com uma produção mais elaborada que os demais, com direito a coreografias, alguma teatralidade e uma escada como adereço de palco, que os figurantes subiam de forma coordenada. À semelhança dos seus álbuns, foi uma celebração da herança e música negras, bastante bem entregues pela banda extremamente competente e pela própria Solange, presença às vezes calmante, às vezes fogosa, mas sempre com voz aveludada. O que impediu a transcendência do concerto foi uma pobre mistura de som. Um volume demasiado elevado retirou detalhe aos instrumentos que caracterizam as canções suaves de Solange e perdeu-se a aura acolhedora das versões em estúdio.

Fotografia de Hugo Lima

Ainda assim, uma versão retrabalhada de “Mad”, uma “Things I Imagined” quase em formato spoken word e a gingona “Losing You” foram muito bem recebidas pelo público, que bebia de cada palavra de Solange como se de um néctar se tratasse. A artista reparou que fomos uma das audiências que menos utilizava os telemóveis durante os seus concertos, facto que nos deixou orgulhosos e ainda mais dedicados a aproveitar esta oportunidade que quase nos pareceu única, de ver uma artista desta magnitude no nosso país. Por isso, gritámos o refrão de “Cranes in the Sky” com garra e aguentámos estoicamente a chuvada que pareceu ter sido encomendada por Solange, para aumentar a experiência. O bom ambiente manteve-se até ao final, em que fomos presenteados com um número quase improvisado, que a artista confessa não tocar em festivais, mas aparentemente merecido da nossa parte.

Para terminar a noite, tivemos oportunidade de saltitar ao som do techno de Job Jobse, mas a prioridade era Yaeji. A produtora de origem coreana tem sido um dos nomes mais badalados da música electrónica contemporânea e a afluência ao seu set demonstrou-o bem. O seu techno quebrado, com mudanças de ritmo variadas, alguma tropicalidade e até um snippet de Kendrick Lamar, deu azo a muita dança. Mas foram os momentos em que Yaeji pegava no microfone para dar voz aos seus próprios temas os mais celebrados da noite. Foi difícil olhar à volta e ver alguém que não estivesse a dançar durante o clímax de “raingurl”.

O festival continua hoje, sem promessas de chuva, mas com nomes como James Blake, Interpol, JPEGMAFIA ou Aldous Harding.

Texto escrito com colaboração de Tiago Mendes.

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