“Noites Brancas”, de Dostoiévski: a eternidade num minuto de felicidade

por Ana Monteiro Fernandes,    30 Setembro, 2020
“Noites Brancas”, de Dostoiévski: a eternidade num minuto de felicidade
Capa do livro “Noites Brancas”, de Fiódor Dostoievski (ed Relógio D’Água)
PUB

Noites Brancas, de Fiódor Dostoiévski, foi relançado este ano pela Relógio D’água, numa oportunidade para uma nova incursão pelo livro que mais marcou o romantismo delicodoce do autor russo.

Noites Brancas, lançado pela primeira vez em 1848, é uma obra totalmente voltada para o romantismo e para os seus devaneios, com tanto de ilusão como de brevidade. Sucinta, não apresenta como objectivo a sagacidade da crítica à sociedade russa e europeia, como se vê, por exemplo, em O Idiota. No entanto, a densidade psicológica que Dostoiévski apresenta em todos os seus livros é, de tal forma, impactante, que a psiquiatra e precursora da terapia ocupacional no Brasil, Nise da Silveira, lhe era totalmente devota, assim como a Machado de Assis (a sua grande paixão literária) e Antonin Artaud — chegando ao ponto de referir que ler este trio superava os compêndios de psicologia para entender a fundo a alma humana. Noites Brancas, não obstante, é breve e lê-se de forma descomplexada, o que faz sentido, porque toda a obra é sobre como um momento breve de amor, ou melhor, como um momento breve de ilusão de amor, pode deixar marcas para a eternidade. E, como tal, o tema, embora breve, acaba por lucrar no quanto tem de complexo.

No fundo, o que Dostoiévski nos apresenta é uma brincadeira com a duração, em si, dos eventos, e a exploração ao máximo de como duas pessoas que, no fundo, se encontram há muito num plano total de solidão, se agarraram à brevidade e à sua promessa de arrebatamento como um escape ao peso do seu dia-a-dia que parece durar e durar. Como tudo isso, como essa simples e breve promessa, pode deixar uma marca para toda a vida ou, pelo menos, uma marca que não passará assim tão facilmente — mesmo sendo uma promessa de quimera, ou uma promessa que se vive com a mesma dissonância ou falta de realidade de um sonho.

“Mas recordar a minha ofensa, Nástenka! Erguer uma nuvem escura sobre a tua felicidade clara e serena, que eu, como uma amarga censura, lançasse a tristeza no teu coração, que o ferisse com um secreto remorso e o obrigasse a pulsar com melancolia num momento de beatitude e fizesse emurchecer nem que fosse uma das tuas flores que entrelaçaste nas tuas melenas negras quando subias ao altar … Oh, nunca, nunca! Que o teu céu permaneça límpido, que o teu amável sorriso seja luminoso e sereno, e que sejas abençoada pelo momento de deleite e de felicidade que deste a outro coração, solitário e agradecido! Meu Deus! Um minuto inteiro de felicidade! Mas será isso pouco para toda uma vida?”

No início do Verão, em São Petersburgo, dá-se o fenómeno das Noites Brancas, o prolongamento dos dias sem o sol se pôr na totalidade — ou seja, não escurece verdadeiramente. Logo aqui vemos como o ambiente é de surrealismo, improbabilidade e de completa quimera. Estabelece-se, também, um paralelismo com a tal noção de brevidade e eternidade das acções dos protagonistas, com a própria duração dos dias e o seu microcosmos irreal, restrito a uma só parte do ano. A obra, que, no total, nem chega às 80 páginas — pelo menos na edição da Relógio D’água —, restringe-se, quase na sua totalidade (à excepção do final), à interacção directa entre apenas duas personagens, havendo, apenas indirectamente, a influência ou interacção de três personagens secundárias mas de grande importância. Essa interacção directa dá-se entre a jovem Nástenka, de apenas 17 anos, e um irrecuperável sonhador do qual não sabemos o nome, apenas a solidão em que permanece.

O seu anonimato no livro quase que estabelece um paralelismo com o anonimato da sua própria vida. Completamente sozinho, numa altura em que vê os habitantes de São Petersburgo partirem para as ‘datchas’ (as casas de campo para férias) enquanto o próprio fica, o sonhador deambula pelos quatro cantos da cidade que parece conhecer intimamente, estabelecendo uma espécie de irmandade e comunhão com as próprias casas, por fazerem parte da infraestrutura e da cara da própria cidade, mas não com as pessoas que nelas habitam. A escassa interação que vai tendo é com a sua empregada, sobre a qual diz recorrentemente não ter nenhum laivo imaginativo (no livro só estabelecem um diálogo directo no final), e é perante este quadro de sonho e de solidão que conhece, então, Nástenka — uma jovem de 17 anos que tem tanto de ingenuidade, como de impulsividade e anseio — na sua própria demanda pelo seu amor.

Podemos dizer que, em Noites Brancas, tudo acontece demasiado rápido e de forma fulgurante, tal como romanticamente é suposto acontecer. Poder-se-ia pensar, até, que essa rapidez chega mesmo a ser inconsequente. O sonhador cruza-se com Nástenka (a primeira mulher além da empregada com quem, de facto, comunica) e fica-lhe grato por não o ter afastado e pela sua atenção. O contacto entre os dois estabelece-se, apenas, em quatro noites (quatro noites brancas), mas é o suficiente para o sonhador se apaixonar pela jovem, por trocarem as suas histórias da forma mais aberta possível, e por aceder (independentemente da paixão instalada) a ajudar Nástenka no seu dilema amoroso. Por sua vez, a jovem vive com a sua avó, de quem gosta, mas com o senão de ser extremamente conservadora ao ponto de ter a sua neta presa por um alfinete a si, através das saias.

Num ápice, e no auge da impulsividade da sua juventude, apaixona-se por um outro jovem (embora mais velho) e, sem grande contacto ou ainda sem lhe ter confessado o seu amor, apresenta-se no seu quarto de malas feitas para partir com ele, quando descobre que o seu apaixonado tem de se ausentar. É então que a promessa lhe é feita — o jovem homem voltaria dentro de um ano, apresentar-se-ia no local combinado para o encontro, e, se Nástenka ainda o quisesse na altura, então casar-se-ia com ela. A jovem, acalentada pela promessa, paixão, e esperança de uma outra vida com mais independência sem o alfinete da avó, agarrou-se a essa breve mas marcante promessa e assim fez — esperou o ano que expiraria, exactamente, na altura em que conhece o sonhador protagonista.

A afinidade repentina entre o sonhador e Nástenka dá-se apenas pelo vislumbre que ambos têm da sua solidão e da sua desgraça partilhada. Tal como Almada Negreiros chegou a dizer como uma forma de explicar o porquê da reunião da geração do Orpheu, “quem partilha a mesma desgraça, junta-se”, e, em parte, é o que se pode aplicar à relação tão rápida mas tão marcante entre os dois. A grande diferença é que Nástenka, nas suas próprias palavras simples, fútil e inconsequente como a própria juventude deve ser (como diria Rimbaud, ninguém é sério aos 17 anos), representa o acalento e a esperança de um sonho ainda no seu início – agarra-se a essa possibilidade com todas as suas forças para conseguir ter uma promessa de vida, ainda que envolta em quimera. É o que, de facto, faz apaixonar o protagonista, porque tal atitude representa o laivo imaginativo tão necessário que este procurava. Já o sonhador, mais velho, embora goste de ver essa esperança reflectida, tem de aprender a juntar os destroços da realidade e deixar essa esperança partir sem rancor e compreender o que pode subsistir do sonho, apesar da traição da realidade.

Dostoiévski serve-se da narração na primeira pessoa (é o sonhador que conta a história) e é neste particular que faz um jogo interessante entre essa mesma narração e a construção dos diálogos. Lemos o protagonista contar a história na primeira pessoa, mas, quando chega a altura de a contar à jovem Nástenka, não consegue fazê-lo. Tem de contar a sua história na terceira pessoa. Fazendo um paralelismo com o próprio anonimato do seu nome e da sua própria vida, torna-se visível a própria despersonalização que não consegue superar.

No fundo, as perguntas que Fiódor Dostoiévski nos lança são as seguintes: pode a vida ser feita e marcada por um breve e fulgurante momento? O que faz um breve momento ecoar na eternidade das nossas próprias vidas? O que que se revela eterno e o que é que se revela duradouro?

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados