No início era a aspirina

por Lucas Brandão,    18 Junho, 2019
No início era a aspirina
Marta Saraiva (@annehail) / CCA
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A Bayer é, nos nossos dias, uma das maiores multinacionais da indústria farmacêutica em todo o mundo. Está sediada em Leverkusen, uma pequena vila alemã — onde se destaca o seu clube desportivo, o Bayer Leverkusen — e estende a sua área de negócio para os fármacos humanos e veterinários, assim como para os cuidados médicos generalizados, não deixando de atuar na agricultura com os seus produtos biotecnológicos.

Tudo começou com a aspirina, o primeiro produto comercializado nos meados do século XIX e prolongou-se até à atualidade com uma vasta gama de antibióticos e de contracetivos. Entre este conjunto de químicos, e ainda no século XIX, a Bayer lançou a heroína para comercialização, na função de substituir a morfina na prevenção da tosse, apresentando-a como menos viciante. Em 1925, juntou-se a cinco outras empresas para fundar a IG Farben, o maior conglomerado da indústria farmacêutica e química do mundo, que destinou a sua atividade para os fármacos, mas também para os químicos e para os explosivos. Os explosivos já tinham sido foco de polémica após a Primeira Guerra Mundial, num processo que acabou por levar a IG Farben à produção de nitrato sintético para a extração de azoto.

Porém, foi nesse período que se começaram a desenhar relações, já após o regime nazi se impor em força, com o seu partido, não obstante os laços que ligavam a empresa ao Partido Popular Alemão. Após uma reunião em 1932, em que acordaram verbalmente um protocolo de trabalho, começaram apoiaram as suas campanhas (a IG Farben tornou-se na principal financiadora do Partido Nazi), assim como, de seguida, a ter uma ainda maior presença industrial, ajustando os seus interesses aos do regime, do seu exército e da sua força aérea. Era assídua a troca de correspondência entre oficiais do regime e funcionários da empresa, felicitando a construção dos campos de concentração e apontando para as perspetivas de futuro de um domínio mundial por parte da Alemanha. Muitos dos químicos usados no período do Holocausto passaram a ser fornecidos pela IG Farben, especialmente o gás usado nas câmaras que tantos vitimaram (o sintético Zyklon-B), assim como parte significativa do armamento usado no conflito da Segunda Guerra Mundial. O término da guerra viria a trazer a justiça atrás da atividade da IG Farben, que a conduziria a uma cisão, no ano de 1951. A Bayer manteve, assim, a sua atuação, em muito concertada com as outras empresas resultantes da separação, sendo elas a BASF e a Hoechst.

Em 1995, o CEO da Bayer, Helge Wehmeier apresentou um pedido de desculpas público a Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto que viria a narrar as suas experiências numa trilogia literária. Lamentava a atuação da empresa durante o período da Segunda Guerra Mundial, nomeadamente o trabalho forçado e a escravidão a que sujeitou muitos dos judeus. No ano de 1943, eram 30 mil aqueles que, vindos de Auschwitz, eram obrigados a trabalhar, com condições indignas e desumanas, à imagem daquele que era o tratamento do regime nazi em relação aos judeus e, eventualmente, àqueles que se opunham à sua ideologia. A IG Farben tinha, assim, à sua disposição, fábricas construídas nos campos de concentração, entre os quais o de Monowitz, parte do complexo de Auschwitz. Aqui, criou-se a subsidiária IG Auschwitz, fundada e gerida por Otto Ambros, onde procuraram sintetizar gasolina e borracha a partir de carvão, potenciando o armamento alemão. Para aqui, a IG Farben passou grande parte dos testes dos seus produtos, assim como agregou mão-de-obra proveniente dos campos de concentração. Os prisioneiros, para além dos trabalhos a que eram forçados, foram avaliados e, depois, encaminhados para essas experimentações.

Um dos seus principais funcionários, Helmuth Vetter, era um físico e capitão das forças de Segurança governamentais. Era ele um dos responsáveis pelas experiências médicas protagonizadas em Auschwitz e em Mauthausen, outro dos campos de concentração mais ferozes deste período, entre outros campos onde trabalhou. Entre os episódios que se sucederam nesta fase, conta-se o transporte de 150 mulheres que foram mortas durante os testes efetuados. Mesmo perante o acontecido, o empregado da Bayer que pediu, por escrito, a Rudolf Höss, então o comandante de Auschwitz, pediu o mesmo número de mulheres, oferecendo o mesmo preço por elas – 170 marcos. Vetter acabaria julgado e condenado à morte, sendo sentenciado em 1947 e executado dois anos depois. A IG Farben tinha, assim, o seu próprio campo de concentração, onde testavam os seus químicos a indivíduos que, indiferentemente do seu estado de saúde, acabavam seriamente doentes ou mortos, como no caso das mulheres acima mencionado. Injeções, comprimidos e pós eram alguns dos exemplos dos produtos que eram testados nessas pessoas, algumas delas tuberculosas, que eram colocadas numa ala restrita. Aí, acabavam por morrer mais depressa, por via dessas experiências.

Os testes a outro tipo de instrumentos eram, de igual forma, efetuados, embora sem sucesso, com os seus resultados a serem inválidos. Por mais que considerassem que as suas cobaias estivessem fragilizadas e que as condições laboratoriais estivessem distantes das ideais, continuaram a procurar encontrar formas de os levar ao êxito. Não obstante, as acusações da monitorização e supervisão por parte da empresa para os fins da investigação e dos proveitos corporativos multiplicaram-se, embora pese a evasão feita pela empresa quando confrontada com este tipo de casos nos anos subsequentes.

Após a guerra, o Conselho de Controlo dos Aliados forçou a extinção da empresa e levaram os principais responsáveis por esta atuação ao tribunal de Nuremberga, perante a justiça militar norte-americana. cuja sentença foi conhecida em 1948. Ao todo, dos vinte e quatro arguidos, foram treze aqueles que foram sentenciados por crimes de assassinato em massa, de tortura e de escravidão em territórios ocupados, para além de apoiar eventuais invasões a outros países e de pertencerem às SS alemãs. Fritz ter Meer, o diretor operacional em Auschwitz da IG Farben, acabou sentenciado a 7 anos, embora fosse libertado dois anos depois, em 1950. Nesse ano, regressaria à direção da Bayer em 1956 até ao ano de 1964, à imagem do que aconteceria com todos os outros, com reduções de pena similares. Isto porque, em 1952, o chanceler da República Federal da Alemanha, Konrad Adenauer, viria a conceder amnistia a todos os que tinham sido presos no decorrer deste processo. Seria, assim, a Bayer uma das que herdaria o fim da IG Farben e que assumiria, como instalações, um terreno que havia sido um cemitério judeu; instalações essas que já remontavam à fusão da Bayer no conglomerado da IG Farben. De igual forma, a BASF e a Hoechst viriam a ter, na gestão de topo, ex-membros do partido nazi, muitos deles parte integrante da anterior IG Farben. Um deles, Otto Ambros, acabaria até por se tornar consultor na hidrogenização de carvão do Departamento da Energia norte-americano.

Até à atualidade, uma sobrevivente de Auschwitz, de seu nome Zoe Palmer, procurou obter uma indemnização da Bayer após ser sido uma das visadas nos testes da então IG Farben. Aos 13 anos de idade, foram-lhe dadas tabletes e comprimidos, que se pensava serem testes de contracetivos. O seu relato indicava o nome de Victor Capesius, médico que acompanhou o seu companheiro de profissão Josef Mengele, conhecido por “Anjo da Morte”, que chefiava o departamento em Auschwitz, em experimentações genéticas a crianças. Não obstante as cirurgias às quais se submeteu, manteve-se infértil e os danos levaram-na a ter cancro. Perante o caso, a Bayer respondeu que nenhuma companhia com o seu nome atual havia existido, escudando-se por detrás da IG Farben. Já Mengele escapar-se-ia aos tribunais e morreria com um alibi, em 1979, no Brasil.

Outro dos casos que motivou uma ação judicial foi o de Eva Mozes Kor, que, ao lado da sua irmã gémea, foi levada para as instalações da agora Bayer para testar vários medicamentos, que as fariam contrair várias enfermidades. Eva e a sua irmã, Miriam (viria a morrer em 1993), tinham nove anos quando foram levadas para Auschwitz, sendo um dos 1500 pares de gémeos que foram forçadas a testes por Mengele. Os objetivos eram os de investigar os efeitos das bactérias, dos químicos e dos vírus no corpo humano; e os gémeos utilizados na possibilidade de um deles funcionar como “controlo”. Acabariam por ficar dez meses em Auschwitz, sendo libertadas em janeiro de 1945. Não obstante, os rins de Eva nunca viriam a desenvolver-se na totalidade.

Hoje, ainda subsiste esta herança mais enegrecida da Bayer, que continua a ser acusada de experimentações eticamente pouco aceitáveis, assim como de obstruir o desenvolvimento de medicação vital e de usar materiais importados e manufaturados em contextos de exploração laboral infantil. Questões similares foram levantadas à produção da Monsanto – multinacional norte-americana dedicada à agricultura e, agora, detida pela empresa alemã, sendo a responsável pela produção do glifosfato que continua a ser comercializado mesmo após serem equacionados eventuais efeitos cancerígenos. Uma subsidiária atual da Bayer, a H.C. Starck, foi, de igual modo, acusada por contribuir para a guerra sangrenta no Congo, na disputa da produção de minérios, em especial do coltan. Não obstante as questões que se vêm levantando hoje em dia, nada consegue ofuscar as proporções e as dimensões da atuação da então IG Farben no Holocausto, o capítulo mais tenebroso do século XX. Tudo isso acaba, no entanto, por não fazer vergar a Bayer, que, mesmo depois de se retratar, evita abordar esta questão. Outros protagonistas em outros momentos, mas que, também eles, contribuem para que a história da Bayer tenha sido escrita a caneta preta e carregada, por cima de destroços em escala humanitária.

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