‘No Dogs Allowed’: a pop minimal e positiva de Sidney Gish já não cabe num quarto

por Tiago Mendes,    28 Junho, 2018
‘No Dogs Allowed’: a pop minimal e positiva de Sidney Gish já não cabe num quarto
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A música de Sidney Gish é uma manifestação desprendida das amarras do que estamos habituados a ouvir. Em No Dogs Allowed, poucas são as canções que poderíamos considerar convencionais. E o curioso é que não estamos diante de uma revolução, de um novo género musical – mas a frescura das melodias e a forma como nos são apresentadas propõem-nos uma inesperada mudança de perspectiva. É um exercício ingrato tentar explicá-lo; mas, à energia positiva e despretensiosa (insuficientemente explorada pelo indie), soma-se um característico virtuosismo, uma marca de autoria. Numa bedroom pop de produção transparente, e ao invés de se esconder atrás de ecos ou reverberações, Gish revela-se tal qual é: letras divertidas e improváveis, sonoridade saltitante e sorridente, e uma voz neutra, não convencional, e emocionalmente flexível.

As melodias são o grande trunfo da artista e compositora. Ora na voz ora na guitarra, conjugam as notas em manifestações de alegria e leveza, ar fresco e novidade. Tudo fruto de uma só cabeça: Sidney, 20 anos, americana, estudante universitária, compositora amadora até o lançamento de No Dogs Allowed na noite de ano novo lhe ter trazido o merecido reconhecimento. Os seus álbuns são cem por cento seus – vozes, instrumentos, gravação caseira, mistura… e até o design da capa, divertida manipulação de stock photos.

As composições, cruzando diferentes géneros, têm em comum ideias simples que se desenvolvem de maneira harmoniosa. Nos momentos minimalistas, lá está com a guitarra acústica e a voz, a assegurar os serviços mínimos: o início de “Mouth Log” é exemplo disso, com um dedilhado simples e eficaz – e crescendo, progressivamente, incorporando outros elementos. Mas há espaço para momentos mais ambiciosos, em que ouvimos teclados e sintetizadores (ora límpidos, ora distorcidos), segundas e terceiras vozes matematicamente adicionadas, linhas de baixo competentes, percussões várias.

Em qualquer dos casos, a prenda chega-nos como expressão de felicidade, em refrões contagiosos que se vão entranhar em nós até à exaustão; daqueles que nos cansamos de trautear mas dos quais não desistimos, porque são fonte de coisas boas. É uma das coisas que impressiona na música de Gish: como é que a soma aritmética de elementos tão simples convoca um resultado tão belo. “Where the Sidewalk Ends” é uma das que melhor capta essa eficácia na simplicidade de Gish.

Vivemos num tempo em que não nos faltam exemplos que ilustrem o processo anárquico de produção musical – um tempo de possibilidades, à mão de semear, com tecnologia barata a permitir-nos inventar beats e gravar hits na casa de banho. Mas, apesar de o fenómeno se aproximar de casos como os de Car Seat Headrest e (Sandy) Alex G, cujas discografias já brilhavam vários anos antes de alguém dar por elas, há nas canções de Sidney Gish uma maior proximidade estabelecida com o ouvinte; a persona faz-se próxima, revela-se frágil, não esconde, não mascara. O resultado é música que nos chega com sabor ainda mais intenso a amadorismo – no melhor dos sentidos: uma pureza que a indústria ainda não domou, que é criatividade em construção, a desbravar caminho, mas que já se domina a si mesma, transbordando qualidade e (paradoxalmente) profissionalismo. É neste estranho limbo sónico que No Dogs Allowed se afirma como um álbum único, que de alguma forma não pertence a este tempo, parecendo pairar numa qualquer era ou cena eminente.

Do quarto para o mundo, Sidney Gish pode muito bem vir a ser um dos próximos grandes fenómenos da indie pop; embora o álbum tenha os seus momentos mais inofensivos, acaba por conseguir transformá-los em armas que marcam a identidade do seu som. Há um desinteresse apaixonado, um foco absoluto nas ideias e no valor das mesmas, e a sensação de que tudo é possível a partir daqui. “Persephone“, quase a encerrar o disco, é o mais bonito dos brindes, e espelha o processo de acumulação e coordenação melódica, em camadas que se misturam de forma orgânica com deslumbre. É o pináculo da exploração emotiva das melodias de Gish, e a prova de um talento a desabrochar à nossa frente. Agradecemos-lhe profundamente essa dádiva, e aguardamos com expectativa as criativas propostas que ainda tem por inventar.

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