Não me julgues por um passado se eu já não vivo lá

por Cronista convidado,    26 Novembro, 2020
Não me julgues por um passado se eu já não vivo lá
Fotografia de Akshay Paatil / Unsplash
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Quantos de nós carregam o peso morto de um passado onde já não existimos? Uns referem-se a tal inércia como bagagem ou história de vida, outros gastam os clichês “tudo o que eu passei fez de mim o que sou hoje” ou “o que não me matou só me tornou mais forte”. Tudo certo, teoricamente sim, somos todos muito adultos e resolvidos, alunos na carteira da frente nessa escola da vida, seguros de que as nossas decisões são sempre em prol do nosso recife de conforto e bem-estar.

Claro que estou a generalizar. Admiro essa pequena percentagem de pessoas que está quase por completo, bem na vida. Pele brilhante, sem olheiras de preocupações ou ansiedades económicas. Não, o dinheiro não traz a felicidade, mas actua indiscutivelmente como um género de adubo não orgânico, nos prados e jardins onde semeamos a nossa felicidade. Poder pagar psicólogos ou psicanalistas, de forma continuada, a ver resultados, não é para a grande maioria.

Poder arranjar uns dentes estragados derivado um passado tóxico e vicioso, permitires-te sentir mais bonita(o) com a simples superficialidade de uns trapos novos ou até mesmo poder pagar momentos de lazer que te criem memórias novas para diluir as antigas.

Acredito que muitos de nós continuamos a ser julgados por capas de edições passadas, quando já escrevemos páginas novas. E por outro lado confundimos o jogo com o jogador. Entrevistas de emprego que rejeitam logo à partida a capacidade de um sujeito devido ao seu corte de cabelo ou alguém que é escorraçado do seu posto porque tem ideologias e ideias diferentes da entidade patronal. Enquanto sociedade parece que perdoamos mas não esquecemos, desperdiçamos várias oportunidades a nível pessoal, mas raramente damos novas chances ao próximo. Creio que esta nossa forma de preconceito está directamente ligada vários muros de individualismo, mais umas palavras acabadas em “ismo”, que interrompem a visão periférica dos nossos horizontes de humildade.

Por vezes dou por mim, em conversas dúbias, seja com amigos/conhecidos de longa data ou familiares. Até posso ponderar em problemas de expressão da minha parte, mas sinto muitas vezes é uma dificuldade na compreensão, e a isto acrescento também o facto de a maioria não querer ouvir, só quer ser ouvida. E tal incompreensão é muita vezes justificada ou argumentada com erros meus do passado, anomalias da minha fauna e flora, umas ingênuas outras irresponsáveis, mas todas elas vivem lá, longe, num passado onde já não existo, naquela estante do sótão, com pó e teias-de-aranha, onde já não mexo faz tempo. Matei uns ideais e reciclei outras ideias, passaram anos, vivi, falhei, mudei, cresci e evolui. Hoje, como se a verdade vivesse no ponto de fuga da geometria descritiva, consigo ver de outros ângulos, pôr-me em diferentes quadrantes e construir novas bases. Cheiros e texturas novas invadiram as minhas memórias, espinhos estimularam o meu carácter e bloqueios nutriram a minha intelectualidade. Desapega-te de possíveis arrogâncias minhas na adolescência por falta de conhecimento ou amargura, ouve-me antes de me veres, e mais que ouvir, escuta. Não preciso que sejas simpático, mas empático.

Se todos os dias a maior força do universo, o Sol, nasce de novo, porque nós seres minúsculos e frágeis, não o faremos com nós próprios?! Olhar menos para baixo a contemplar o umbigo, e mais para cima a ter consciência dos telhados de vidro. Acusamos tanto os políticos e a polícia, mas socialmente somos tão cruéis uns com os outros. Somos tão intelectuais e desenvolvidos mas temos atitudes e julgamentos de juízo e valor tão primitivos. Pessoalmente, baseio-me muito na filosofia “Ubuntu” da África do Sul. A palavra é uma síntese do provérbio “Umuntu Ngumuntu Ngabantu“, que significa “Uma pessoa é uma pessoa por causa das outras pessoas“. O conceito prende-se à consciência da relação entre o indivíduo e a comunidade, um conceito moral e uma forma de estar que se opõe ao narcisismo da sociedade ocidental capitalista.

E então, se livros fôssemos, relacionando a nossa aparência física à capa de um livro, numa próxima vez não a julguem pela cor, pelo título ou os desgastes que o tempo trás, nem te fiques pelo interlúdio. Talvez te possas surpreender pelo número de páginas que contém, encontrar uma história distinta da primeira impressão criada ou entender que por vezes uma capa cheia de cores e propaganda, nada trás por dentro e uma capa escura ou discreta pode conter muito mais brilho do que imaginas. Há tantas más ideias enraizadas e tantas agradáveis por semear. 

Crónica de João Grilo

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