Não há estrelas no Rock

por Rui Cruz,    24 Fevereiro, 2019
Não há estrelas no Rock
PUB

Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

 

“Não há estrelas no céu” cantava Rui Veloso com claro déficit de conhecimento sobre astronomia. Apesar de serem cada vez mais difíceis de observar, devido à poluição que tão bem andamos a cultivar, qualquer tolinho consegue olhar para cima e ver meia dúzia de pontos brilhantes no céu ou no tecto do quarto de uma criança de classe média cujos pais, num assomo de bom gosto, decidiram transformar num planetário com meia dúzia de autocolantes comprados na Tiger. Onde não há estrelas, caro Rui, é no Rock.

 

Penso que é seguro dizer que a Rock Star morreu. Não que não existam bandas Rock de sucesso hoje em dia (cada vez menos), mas o conceito de estrela do Rock está morto. O artista feroz, perigoso, rebelde, o artista imprevisível, anti-sistema, que puxava os limites (os seus e os dos outros) está tão fora de moda como as calças à boca-de-sino de quem o ouve. Sim, eu sei que nem todos os fãs de rock usam calças à boca-de-sino, mas é a minha oportunidade de dar voz a este grupo ostracizado por uma cruel elite costureira. E sim, somos um grupo, tenho a certeza. Vamos, camarada boca-de-sineiro, ergue a tua voz e assume-te com orgulho! Não estás sozinho e, se for preciso, fazemos como o Carlos Ramalho e avançamos para uma greve de fome até esta peça voltar às montras. Portanto, lojas de roupa: têm até amanhã à hora de almoço para cumprirem com a nossa exigência senão… acabamos com a greve porque não comer é chato e dá fome e já vincámos a nossa posição. Caraças, só não sou enfermeiro porque desmaio a ver sangue.

 

Voltando ao tema. Cresci no meio do rock, com os meus pais a embalarem-me ao som de The Doors, Led Zeppelin, AC/DC ou Jethro Tull; idolatrei bandas que fui descobrindo na adolescência como The Cure, The Smashing Pumpkins, Ornatos Violeta ou Placebo; na faculdade aprofundei o gosto pelas artes ao ouvir coisas como The Beatles, Mão Morta, Iggy Pop ou Virgin Prunes e, já adulto, continuo a descobrir pérolas como Buffalo Springfield ou a redescobrir bandas como Oasis. E não, não escrevi isto nem entrei neste name-dropping para mostrar que tenho bué bom gosto (que tenho) ou que sou super culto (prefiro génio), mas sim para ilustrar o que estou a dizer: nenhuma das bandas é recente. Sim, eu sei que dizer que antigamente é que era bom é típico de pessoal velho e/ou reaccionário, mas quando o assunto é Rock, a coisa é mesmo verdade. Aliás, basta ver que, hoje, quando se vai buscar uma banda de Rock para cabeça de cartaz de um festival quase que se tem de ir ao lar da terceira idade ver quem é que ainda consegue tocar ao vivo sem levar oxigénio ou fraldas. Só este ano vamos ter Cure e Smashing no Alive; Procol Harum no Coliseu; e Rod Stewart, Tool e Scorpions na Altice Arena e tem sido sempre assim nos últimos anos. Porquê? Porque não há nem Rock Stars míticas nem bandas Rock míticas contemporâneas. E isto tem uma explicação mais ou menos lógica: o Rock não vive sem Rock Stars e as Rock Stars não têm espaço nesta sociedade de modas e de gostos pastilha elástica.

 

A Rock Star é a apologia do excesso e da liberdade. É a subjugação da racionalidade e da ordem ao sentimento e à vontade própria personificada. É o grito do Ipiranga que dá independência ao indivíduo e o celebra na sua unicidade. Ora, num mundo em que cada vez mais a diferença é assinalada apenas pela escolha do filtro que se usa nas fotos do instagram, não há lugar para anarquia desconcertante da Rock Star. O próprio estilo musical perdeu relevância, como se pode comprovar ao passar um dia a ouvir rádio. Hoje, as (poucas) bandas Rock que chegam à rádio são competentes, mas não têm a aura de perigo e de transgressão que sempre foi associada ao estilo. Já não há pais assustados por os filhos ouvirem os delinquentes dos Sex Pistols ou o anticristo Marilyn Manson, porque por melhores que sejam os Artic Monkeys ou os Tame Impala, mais facilmente os imaginam a beber chá depois de um concerto do que numa orgia. Esse perigo associado ao Rock passou para o Hip Hop e se calhar por isso é que actualmente a juventude se identifica tanto com Rappers, que dentro da música “mainstream” (sim, o Hip Hop é actualmente mainstream, como o Rock o foi nos 90’s) ainda são os que mantém algum do risco anteriormente associado aos gadelhudos, e vê o Rock como um estilo ultrapassado e de velho, palavras que ouvi e que me magoaram mais do que a vez em que me entalei na braguilha.

 

A própria maneira como se encara hoje a arte, no geral, é propícia à morte da Rock Star. A procura dos resultados imediatos, potenciada pelas redes sociais, faz com que a experimentação seja abandonada em detrimento da fórmula vencedora. Hoje seria impossível a uma banda como os Beatles fazer um álbum como o “Revolver” depois de testada com êxito a fórmula que os fez ter sucesso anteriormente. Editoras, managers e fãs não o permitiriam e mesmo a banda não o faria porque actualmente a fama é mais importante do que a necessidade de criar e de explorar a motivação que te faz criar. E isso é transversal a todas as artes, da música à pintura, da literatura à comédia, o que não será alheio à migração de publicitários para o meio artístico, mas isso é assunto para outro dia. Ora, sem experimentação, sem puxar os limites, sem romper com o que é “o normal” ou com “o que resulta”, não há Jimi Hendrixs, não há David Bowies, não há Neil Youngs, há Maroon 5s. E é isso que estamos a ver e ouvir em todo o lado. E por isso é que já não há putos a tocar em garagens com o sonho de encher um dia Wembley, mas sim miúdos a cantar no quarto com o sonho de um dia irem ao The Voice, como disse e bem o Dave Grohl.

 

E a verdade é que, pelo menos nos próximos anos, a coisa não vai mudar. A arte imita a vida (ou a vida imita a arte, dependendo do ponto de vista) e a vida que levamos é cada vez mais uma vida de conformismo e consumismo ou conformismo no consumismo, onde as artes são apenas entretenimento e o dinheiro e a fama efémera (porque daqui a 100 anos ninguém se vai lembrar do Post Malone, mas vão continuar a vestir t-shirts com a cara do Jim Morrison) são mais atractivos do que ser livre e explorar a raiva, a dor ou até o jardim de polvos que tens dentro da tua cabeça. Por isso resta-nos, a nós, amantes do Rock, aproveitar os últimos anos que temos para ver as nossas Rock Stars geriátricas nos palcos que ainda percorrem. Até porque sem eles, não há mais ninguém para o fazer. Que tenha uma longa vida o Liam Gallagher, muito possivelmente o último roqueiro a sério que produzimos, pois cheira-me (no pun intended) que depois dele nem daqui a 30 anos teremos uma estrela no Rock.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.