Nada há de bom no ser humano

por Frederico Lourenço,    24 Novembro, 2018
Nada há de bom no ser humano
Frederico Lourenço / Fotografia de Ricardo Almeida
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A frase em epígrafe, que ocorre em Eclesiastes 2:24 na versão grega (Septuaginta), levanta um problema esmagador, que é parte do problema mais amplo suscitado pelos livros do Antigo Testamento reunidos no primeiro tomo do Volume IV da minha tradução da Bíblia. O ser humano é bom ou mau? E mais radical ainda: Deus é bom ou mau?

Ao lermos atentamente Eclesiastes e Job, vamos alterando nas nossas cabeças as respostas possíveis as estas perguntas e vamos encontrando fundamentação para as conclusões mais opostas. O Deus que o livro de Job nos dá a ver é um Deus bom? E o que dizer dos amigos de Job, que culpabilizam Job pelo sofrimento que ele não mereceu para ilibar Quem consentiu tal sofrimento imerecido?

Como sempre, as dificuldades de interpretação são indissociáveis da letra do texto. A frase grega «nada há de bom no ser humano» não tem exactamente esse sentido no texto hebraico, onde se sugere, antes, «nada há que valha a pena para o ser humano». A complexidade da frase – e as implicações incómodas que acarreta – ditaram a sua omissão da Vulgata: não existe na Bíblia católica em latim.

De resto, Eclesiastes coloca-nos diante de ideias que são dificilmente compagináveis com o cristianismo. É curioso vermos que não há citações explícitas de Eclesiastes no Novo Testamento: talvez os primeiros cristãos se tenham sentido derrotados perante o desafio de encaixar este texto desconcertante e pessimista na sua mundividência.

A mesma situação verifica-se em relação ao Cântico dos Cânticos, não obstante a posterior interpretação cristã como poema sobre Cristo-noivo e a igreja-noiva (ou alma-noiva ou até sobre Maria). Como texto dificilmente adaptável ao cristianismo, nenhum autor do Novo Testamento o cita. Tal como escreveu Robin Lane Fox, «as alusões cristãs levaram algum tempo a ser inventadas».

No capítulo 4 do Cântico dos Cânticos, o versículo 7 estimularia vários séculos depois da sua redação (que ocorreu talvez no século IV a.C.) leitores cristãos a projectarem nele dois temas queridos do sentimento cristão: Maria e o pecado original. A frase hebraica que a Vulgata traduziu como «tota pulchra es et macula non est in te» aparecerá mais tarde numa obra-prima do canto dito gregoriano como «tota pulchra es MARIA et macula ORIGINALIS non est in te».

Assim, ao anacronismo da alusão mariana se juntou também o anacronismo da doutrina do pecado original.

A história da leitura da Bíblia é, em muitos sentidos, análoga ao processo que levou catedrais góticas a ficarem cheias de talha dourada no período barroco. Há quem entenda que a talha barroca já faz parte da catedral gótica e por isso é intocável. Há quem entenda o contrário.

Nada que Eclesiastes (8:17) não tivesse já antevisto:
«Aquilo que o sábio disser que sabe
é algo que ele não conseguirá descobrir».

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