Mulheres nas autarquias: a luta continua

por Liliana Pedro,    27 Junho, 2019
Mulheres nas autarquias: a luta continua
Marta Saraiva (@annehail) / CCA
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As mulheres chegaram ao poder autárquico em 1976. Desfiaram a tradição paternalista e traçaram o caminho para as gerações futuras. Eram cinco. Hoje, são 31. Um percurso conturbado, com altos e baixos, mas com muitas conquistas pelo meio. De 1976 para 2019, o que é que mudou?

A revolução dos cravos derrubou o conservadorismo, o nacionalismo e o paternalismo do Estado Novo. Com o sentimento de liberdade a renascer na sociedade portuguesa, as mulheres passaram a participar na vida pública. Nas eleições autárquicas de 1976, o poder local foi desafiado por cinco mulheres. Sem medos e com vontade de fazer mais pela população, entraram para a história como as primeiras presidentes de câmara em Portugal. Podiam não ter os mesmos ideais políticos, mas tinham um objetivo em comum: a destruição do patriarcado em prol da igual de género. Este objetivo tornou-se numa luta pela afirmação da mulher nos cargos de poder.

Odete Isabel foi a mulher a aparecer em primeiro lugar na lista de colocações das autarquias. Na Mealhada, cidade pertencente ao concelho de Coimbra, assumiu as rédeas do poder durante quatro anos. O cargo de presidente de Câmara Municipal foi encarado com a máxima responsabilidade. “Eu sentia que era capaz de fazer tudo. Queria saber até onde conseguia ir com o meu poder.” O percurso político nem sempre foi fácil. O machismo e as diferenças de género eram uma constante. “Passei muitas vezes por prostituta. Ainda para mais com a minha maneira de ser. Metia-me com toda a gente. Gosto de comunicar. Quem me dizia isso queria que eu me demitisse.” Mas desistir nunca foi uma opção. Antes do seu mandato, a Mealhada não tinha dinheiro, estava desorganizada e os trabalhos eram precários. Durante o período de governação, procurou satisfazer as necessidades dos habitantes da Mealhada através da eletrificação, do saneamento, da criação de postos de trabalho e da construção de escolas. Ao longo do seu mandato, Maria de Lourdes Pintassilgo foi a principal referência. Com ela, aprendeu a dar preferência ao “ser” em vez do “ter”. “Maria de Lourdes Pintassilgo deixou em mim uma vontade enorme de espalhar sementes de humanidade. Na Câmara, procurei transmitir os ideais de igualdade de género e a importância do respeito pelo próximo.”

Nas mesmas eleições, no Sardoal, vila pertencente ao concelho Santarém, Francelina Chambel foi eleita presidente de câmara pelo Partido Socialista (PS). No marido, encontrou o incentivo e em Mário Soares os valores de igualdade, liberdade e justiça. Diz nunca ter sido vítima de machismo a nível local, mas a nível político a história foi outra. “Durante as campanhas eleitorais, o CDS queria o poder. Inventavam coisas sobre mim e pediam inspeções. Foram umas feras comigo.” A responsabilidade e o compromisso com a população exigiram que Francelina Chambel trabalhasse 14 horas por dia, o que acabava por retirar-lhe o tempo para estar com a família. “Não foi fácil conciliar a vida política com a vida privada. Fui presidente de Câmara com quatro filhos. Sacrifiquei-os muito, mas talvez isso lhes tenha dado alguma fortaleza para o futuro.” Hoje, aos 84 anos, recorda com orgulho os vestígios que deixou no Sardoal: o abastecimento de água, a electricidade, o quartel dos bombeiros, o centro de saúde, a habitação social e as escolas. “As pessoas reconhecem o que eu fiz e isso, como é óbvio, deixa-me muito satisfeita.”

Elas têm que provar que são capazes

Estamos em 2019. Já se passaram 43 anos desde que as primeiras mulheres chegaram ao poder autárquico. A presença do sexo feminino em cargos políticos, mormente no âmbito local, tem vindo a ascender, principalmente, após a aprovação da Lei da Paridade, em 2006. Segundo este diploma, as listas para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para as autarquias locais têm que ser compostas de modo a assegurar a representação mínima de 33% de cada um dos sexos.

Na Amadora, são as mulheres que ocupam os lugares de chefia nos órgãos executivos. Carla Tavares é a presidente de câmara, função que desempenha há dois mandatos. A política apareceu na sua vida de forma expontânea. Tudo começou na Reboleira, quando foi convidada para integrar a lista da assembleia de freguesia. A partir daí nunca mais parou. De vice-presidente a presidente de Câmara da Amadora, Carla Tavares conquistou a confiança da população. No início do seu percurso político, confessa que sentiu algum machismo. “Se os homens davam o litro, eu sentia que tinha que dar cindo. Tive que provar que era competente e com sentido de responsabilidade.” As preocupações são permanentes, principalmente as que estão relacionadas com a coesão social e territorial. “Às vezes queremos resolver um problema e arranjamos mais cinco.” As linhas de atuação da Câmara Municipal da Amadora prendem-se com a promoção da segurança, do desenvolvimento da mobilidade e da igualdade de género. Nesta última linha de intervenção, Carla Tavares diz que é importante que as mulheres tenham as mesmas condições de participação que os homens na vida pública, mas é imprescindível que tenham gosto pela política. “Estamos a assistir a uma maior ocupação dos cargos políticos por parte do sexo feminino. Contudo, é necessário que as mulheres vistam a camisola.”

Célia Marques “veste a camisola” por Alvaiázere, vila pertencente ao concelho de Leiria, desde 2015 como presidente de câmara. Situada no interior do país, a população de Alvaiázere é predominantemente rural, mas está aberta ao desenvolvimento do empreendedorismo, a principal missão do mandato de Célia Marques. “Queremos atrair população jovem para a nossa vila e criar postos de trabalho. É uma caminhada longa, mas já temos empreendedores fixados em Alvaiázere.” Célia Marques revela que já sentiu desigualdade de

género, mas procurou, rapidamente, dar a voltar a essa situação através da sua competência e dedicação à câmara municipal. “Quando assumi funções na câmara, senti que tinha que mostrar que tinha a capacidade de ser competente. Infelizmente, acho que este é um problema transversal a todas as mulheres.”

Mulheres nas autarquias, procuram-se

Apesar de o regime democrático já ter ultrapassado as quatro décadas de existência, a realidade é que ainda se verifica uma subrepresentação das mulheres nos cargos de representação política em Portugal, apesar de, segundo as tendências demográficas, as mulheres terem níveis mais altos de escolaridade e profissões com maior grau de especialização.

Em termos de dados oficiais, considerando o estudo mais atualizado que data de 2013, as mulheres representam 26,6% do poder autárquico. Quantos às Presidências femininas, elas representam 7,5% do poder nas Câmaras Municipais. Os dados demonstram também uma maior participação das mulheres nos órgãos deliberativos do que nos órgãos executivos.

Durante a preparação da Agenda 2030 da ONU, a lacuna de conhecimento sobre o poder local numa perspetiva de género foi reconhecida, tendo, em 2017, sido estabelecido um indicador no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, de modo a efetuar o levantamento sistemático de dados e avaliar a proporção de mulheres eleitas localmente.

Ana Ribeiro da Silva, doutoranda em Estudos de Género, diz que a fraca presença das mulheres no poder local é um problema social e urgente. “A presença das mulheres nos órgãos de poder locais é amplamente ignorado, tanto na academia como no meio político. Em 2017, assisti a uma assembleia política que antecedeu as últimas eleições autárquicas onde se reuniram vários/as Presidentes de Câmara para discutir o tema da sub-representação e nenhum dos presentes acertou no número/percentagem de mulheres a ocupar, à data, aquele cargo.”

Contudo, Ana Ribeiro da Silva diz estar confiante em relação ao crescimento do número de mulheres a ocupar cargos de chefia nas autarquias, pois não há nenhum obstáculo que se prenda à candidatura do sexo feminino para os órgãos executivos das câmaras municipais. “O Estado português, desde a Constituição de 1976, tem assumido a promoção da igualdade entre mulheres e homens no âmbito institucional e jurídico. Não existem obstáculos formais que impeçam a participação das mulheres na política ativa ou a ascensão a cargos de liderança.” Atualmente, discutem-se novas formas de participação política e de cidadania a nível local, como as candidaturas de grupos de cidadãos eleitores, e alguns incentivos a uma maior participação dos cidadãos na vida autárquica, nos quais a presença das mulheres tende a assumir relevância crescente. Porque a luta continua.

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