‘Molly’s Game’, a locomotiva desgovernada de Sorkin

por David Bernardino,    11 Dezembro, 2017
‘Molly’s Game’, a locomotiva desgovernada de Sorkin
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Apesar de não ter uma carreira particularmente extensa em cinema (começou com o icónico A Few Good Men, traduzido por aqui como Uma Questão de Honra em 1992), Aaron Sorkin é considerado um dos mais interessantes argumentistas a trabalhar na indústria, particularmente graças aos últimos 3 filmes cujo o argumento escreveu: The Social Network, Moneyball e Steve Jobs, tendo ganho o respectivo Óscar pelo primeiro. Tendo igualmente escrito o argumento, Molly’s Game é a primeira incursão de Sorkin na realização. As imagens de marca do escritor estão lá todas, os diálogos em cascata, com grande cadência, as frases suspensivas, os entusiasmos pelo dom da palavra. Infelizmente tudo isso cai por terra no momento em que o conteúdo se mostra tão desinteressante e irrelevante que se torna uma mera prova de resistência matemática, disfarçada de letras.

Molly’s Game conta a “verdadeira” história de uma ex-praticante olímpica de ski que, após lesão, entra no mundo da organização de jogos de poker semi-clandestinos, dominando no processo homens poderosos e endinheirados. O filme torna-se, após os seus primeiros 20 minutos (que são, juntamente com os últimos 10, os únicos que empregam algum character development minimamente relacionável no ecrã) um exercício formalista em excesso de velocidade, sempre com grandes explicações, gráficos e linguagem técnica pretensamente entusiasmante, ao estilo de filmes como The Big Short, Wolf of Wall Street ou War Dogs, que pura e simplesmente não têm justificação para existir. O problema é que, aqui, a lente (e caneta) de Sorkin está mais preocupada em filmar o avantajado decote de Jessica Chastain, ao mesmo tempo que procura pintar um retrato de uma mulher empoderada, dominadora de homens poderosos, do que em contar uma história que justifique ser contada.

Não basta associar Molly’s Game à suposta interpretação furacão de Chastain apenas pelas características adjectivas da sua protagonista, que bem espremidas não vão além de uma robotização pragmática de como uma pessoa aparentemente sem grandes escrúpulos se lança em mundos perigosos para fazer dinheiro, seja ela homem ou mulher. A actriz já tem provas dadas mais que suficientes para ser considerada uma das mais entusiasmantes da indústria, e certamente esta dança negocial nos obscuros meios dos jogos de poker privados não é a que melhor nos permite ver isso.

Está lá também a interpretar o pai de Chastain o veterano Kevin Costner, que nesse sprint final, que se pode apelidar de climax antes do climax, oferece a consulta psicológica não encomendada à protagonista sua filha, explorando a sua infância, desfazendo, com complacência da lente exploratória de Sorkin, toda a independência feminina conquistada até então. Não deixa de ser irónico que esse momento seja simultaneamente o mais embaraçoso e mais humanamente interessante em todo o filme, sendo que esta segunda característica está ausente durante as suas penosas duas horas e vinte minutos de duração. A grande diferença de qualidade para filmes como o mais recente Steve Jobs, de Danny Boyle, está na realização e na direcção de actores. Sorkin está muito longe de ter feito um bom trabalho. Molly’s Game parece que está em tudo exagerado face ao que normalmente associamos a um argumento de Sorkin, como se de uma auto-caricatura se tratasse.

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