Midori Takada explorou as possibilidades do som na Culturgest

por Bernardo Crastes,    20 Novembro, 2018
Midori Takada explorou as possibilidades do som na Culturgest
Midori Takada. Fotografia de Vera Marmelo / Culturgest
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Ao entrar no Grande Auditório da Culturgest para assistir ao espectáculo de Midori Takada, era impossível não ficar intrigado pela disposição de instrumentos em palco: pratos solitários erguiam-se como estátuas, distantes uns dos outros, fronteando duas outras áreas separadas – à direita, uma imponente marimba, instrumento característico da artista japonesa; à esquerda, um conjunto de tambores, ladeados por mais um par de tambores suspensos, com um gongo por trás. O dramatismo do design cénico acentuava o espaço vazio, parte importante da música e do conceito artístico deste espectáculo. Tendo em conta que a maior parte da carreira de Midori se fez no domínio do teatro, a atenção dada à apresentação visual não é uma surpresa, assim como à componente performativa, dois elementos que transformam o espectáculo em mais do que um simples concerto.

Midori entra em palco com passos delicados e movimentos amplos, segurando um pequeno objecto que produz um silvo quase inaudível, mas penetrante. Foi impressionante apercebermo-nos como, mesmo sem amplificação sonora, o som atravessava a sala. O público perscrutava a cena com um silêncio reverencial (e alguma tosseira de Outono), enquanto a artista se deslocava por entre a floresta de metais com uma graciosidade teatral. Após largar o estranho objecto, dedicou-se a explorar os vários componentes em palco, usando baquetas para fazer vibrar os pratos em baques soltos ou para os arranhar, produzindo sons dissonantes e indutores de calafrios. Esta descrição pode passar uma imagem desagradável e/ou estranha, mas esta exploração das possibilidades e vicissitudes do som foi uma das grandes mais-valias do espectáculo, com diferentes texturas que o enriqueciam.

Midori Takada. Fotografia de Vera Marmelo / Culturgest

A juntar-se aos elementos percussivos, a voz de Midori Takada surgia declamatória, ora com um timbre gutural, ora frágil e quebradiço; por vezes, soltava-se em vibratos emotivos. Num inglês de sotaque forte, ia soltando palavras carregadas de significado em vaticínios cuja força se perdia no ritmo das frases. As suas profecias do vazio funcionaram mais como acompanhamento da componente visual do espectáculo. Na altura em que a voz se tornou o elemento principal, sentiu-se uma certa dispersão do público, mais irrequieto e ansioso pela demonstração dos dotes de percussionista da artista.

Essa expectativa foi atendida, pois quando Midori empunhou as suas baquetas junto aos tambores, o resultado foi em partes iguais impressionante e destrutivo. Com segurança e rigor, os ritmos entrecruzavam-se, como se fossem produzidos por mais do que uma pessoa. No entanto, o pináculo da técnica veio com o uso da marimba. Ao usar quatro baquetas suaves, as melodias duplicavam-se e nunca soavam iguais. A vibração das teclas expandia o som em ondas que enchiam a sala e incitavam a acompanhar o ritmo com as pontas dos dedos. Entre cada momento musical não se ouviam palmas, na expectativa de que um som inesperado surgisse ou simplesmente no reconhecimento de que o silêncio fazia tanto parte do espectáculo como o som.

Midori Takada. Fotografia de Vera Marmelo / Culturgest

Ainda assim, as peças apresentadas não soaram tão encantatórias como no seminal disco de Midori Takada, Through the Looking Glass – editado originalmente em 1983, tornou-se num disco de culto até ser resgatado da penumbra no ano transacto através de uma reedição -, talvez pela falta dos outros elementos sónicos aí presentes: o órgão, outros instrumentos de percussão e, acima de tudo, os samples de aves exóticas tão marcantes. As várias faces do espectáculo acabaram por transmitir a sensação de ser algo dispersas, como sketches musicais soltos; fortes por si só, mas sem uma linha condutora que justificasse a sua justaposição numa apresentação de cerca de uma hora e um quarto.

A razão pela qual o espectáculo se torna tão marcante é a forma como a artista reclama a autoria do mesmo, apresentando uma genuína performance a solo. É crua, dinâmica e inteiramente sua. Assistir a algo assim – principalmente tendo em conta o contexto da sua carreira – é quase como ser-nos sussurrado ao ouvido um segredo bem guardado. No final, a ovação do público é recebida com humildade e um sorriso genuíno por parte de Midori. Foi mais uma ligação honesta potenciada pela programação desafiante e atenta da Culturgest.

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