“Metamorphosis”: Kafka visto pela gaveta

por João Diogo Nunes,    29 Agosto, 2020
“Metamorphosis”: Kafka visto pela gaveta
Metamorphosis
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Em Metamorphosis jogamos com Gregor Samsa, esse mesmo, o protagonista de A Metamorfose, de Franz Kafka. Como tal, somos um humano que se transformou num inseto, só que esta não é uma adaptação direta do livro, estamos longe disso. Inspirado n’A Metamorfose e, até mais, n’O Processo, este é um aproveitamento dos detalhes narrativos dessas obras quase em forma de tributo. Aqui, ao contrário do livro homónimo, Gregor é um inseto de tamanho real, pelo que o cenário é composto por objetos de larga escala, ou seja, um garfo pode ser uma ponte e o interior de um gramofone um salão de dança para os bicharocos mais refinados.

A Torre, o destino principal do jogo, está envolta num turbilhão de burocracia

O início do jogo promete um olhar profundo para a vida das personagens, infelizmente, essa ideia é abandonada e ajudar o nosso amigo, Joseph K., na sua condenação misteriosa passa a conduzir o jogo, raramente oferecendo mais informações acerca das vidas das personagens nesta versão alternativa. Assim, o novo olhar para a história não traz nenhuma adição digna, não há algo a retirar de lá, a utilização das inúmeras referências gera uma temática vazia onde a jogabilidade e a arte visual se sentam casualmente. Embora estejam sempre afastadas da temática principal, são as vidas dos bichos que nos trazem as histórias mais interessantes, como o caso dos insetos que discutem o determinismo ou as peripécias das personagens shakespearianas Rosencrantz e Guildenstern.

O fim chega abruptamente com uma escolha que leva a duas conclusões diferentes, de contornos bastante interessantes, mas insuficientemente construídos durante o jogo. Em vez dessa construção, há meras referências, há a história de Joseph K. em ciclo e há personagens cujos diálogos não ampliam as consequências de cada final. O fim põe-nos a questão do significado de ser humano — será só uma questão de anatomia? Mas esse conflito revela-se raso e não passa de um trilho mal sinalizado na narrativa.

Como um coleóptero indefinido, como sugeria Nabokov, somos capazes de saltar, correr e usar substâncias pegajosas que nos permitem caminhar pelas paredes, isto para além das ações destinadas à resolução de alguns dilemas simples, pois as inventivas secções de plataformas também os requerem. Navegar pelos livros e gavetas nunca é monótono, cada trajeto é único e criativo e, ainda que não exija muita habilidade, abre espaço a uma navegação mais livre para explorar os recantos deliciosos dos cenários. Os colecionáveis são a recompensa pela exploração e o som que fazem quando nos aproximamos incentivam a que os procuremos, uma técnica valiosa que tem ganhado popularidade.

Durante o jogo vamos encontrar mais insetos e podemos ajudá-los para que em troca possamos avançar. A certa altura, chegamos a uma zona aberta com várias alternativas para progredir na missão principal e com outras tarefas secundárias opcionais para descobrir, a maioria recheada de bom humor. Esta área é uma pausa agradável nas plataformas, já que muda bastante o ritmo do jogo, a forma de jogar e o seu conteúdo, sendo também a melhor parte a nível narrativo. Durante o jogo, tentamos reverter a condição de Gregor, mas somos minúsculos perante os obstáculos que são a burocracia e a hierarquia corporativista, que gostam de atrapalhar porque, no fundo, é apenas para isso que servem. O que nos coloca nestas sensações de impotência é a escala do cenário e arte, não a jogabilidade, que, mesmo sendo refinada e imersiva, nem sempre consegue transmitir o simbolismo que o jogo exalta nas suas outras partes, gerando uma certa desconexão. A falta de uma química sólida é o que impede o jogo da Ovid Works de ir de uma referência bem estruturada a algo mais profundo.

É comum ver autores conhecidos nas capas dos livros que compõem as plataformas

Visualmente, reconheçam-se os efeitos de partículas, a água, a luz e o fumo. A direção artística é bastante competente, com visuais muito apelativos de cores vivas e reluzentes nas áreas domésticas. Já as zonas destinadas a insetos têm tons mortos de verde, castanho e amarelo que criam um ambiente imersivo juntamente com a perspetiva do jogador. As animações nunca se destacam, mas, no geral, são competentes. As texturas são algo pobres após os níveis iniciais, menos os tecidos, que estão bastante bem. A oclusão é outro departamento problemático e a colisão de vez em quando perde o juízo levando alguns NPC a voarem quando chocam com algo. A maior parte dos modelos são desenxabidos, a sincronização labial humana tende a falhar redondamente e a física podia levar uns ajustes.

Quanto aos cenários, são extraordinários, têm um sentido de escala que absorve a atenção jogador. O design de níveis é bastante variado e natural, tendo em conta a tarefa difícil que é criar plataformas com objetos em disposições domésticas realistas. Já nos menus, as caixas de diálogo são desengonçadas e as que ocorrem sem controlo do jogador demoram uma eternidade a circular. Há ainda algumas falhas de ortografia.

O jogo também está disponível com legendas em português (do Brasil)

Relativamente ao som, a música é razoável, adequada também, mas o seu uso é insípido: existem silêncios que caem muito mal no ritmo do jogo. Já os efeitos sonoros são muito bons e até mesmo distintos, como se verifica  nas portas ou nos sons das patas, no entanto, há, no início, sons de passos dessincronizados com a passada. As prestações vocais desenrascam, mas são afetadas pelas pausas exageradas entre falas, que, mesmo sendo propositadas para não exigirem tanta atenção durante a jogabilidade concomitante, não caem bem. As falas dos insetos, que usam uma língua inventada que mistura palavras alemãs, inglesas e eslavas e estão distorcidas para parecerem asquerosas, são cansativas porque há bastante diálogo com esse efeito.

Tal como Jorge Luis Borges (Tlön: The Misty Story, Library of Blabber ou Intimate, Infinite), Kafka está a tornar-se numa influência regular (The Franz Kafka Videogame é reminiscente), mas transportar a deslumbrante simplicidade do escritor da Boémia para o palco complexo deste meio não é fácil. Esta aventura kafkiana é, ironicamente, mais valiosa no que tem a oferecer no design de níveis, jogabilidade e direção artística do que propriamente na narrativa de inspiração literária e abordagem dos temas análogos.  O que mais prejudica o jogo é aquilo que é suposto defini-lo: Kafka. O bizarro e o surreal são manejados demasiado timidamente e ancorados com frequência ao mundo concreto do jogo. Metamorphosis não parece uma ideia completa, uma jornada planeada com princípio, meio e fim e uma mensagem firme, mas sim uma ideia engraçada que se perdeu no caminho, preenchendo os vazios entre os seus nódulos mais definidos com improvisações forçadas, o que explica o final abrupto. Apesar das limitações, Metamorphosis é uma boa experiência e navegar o mar de burocracia e absurdismo kafkiano não deixa de ser um prazer devido à jogabilidade entusiasmante e aos visuais atrativos.

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