‘Memories’, dos Sonic Jesus: o futuro é mesmo feito de memórias

por João Diogo Nunes,    4 Dezembro, 2018
‘Memories’, dos Sonic Jesus: o futuro é mesmo feito de memórias
Capa do disco
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Depois de Grace e do 7” homónimo em 2017, a banda italiana de rock psicadélico está de volta com mais um álbum. Memories é uma coleção de demos, b-sides e outtakes de 2010 a 2015 que reflete a vontade do grupo em trabalhar com sonoridades diferentes — são fragmentos do passado moldados em futuro. O objetivo, segundo Tiziano Veronese, é “forjar algo muito pessoal” com esta divergência estilística e argila grosseira.

Se não se soubesse, era complicado perceber as referidas intenções da banda, pelo menos até se chegar a meio do álbum, onde a sonoridade muda e se nota que esta poderá ser uma experiência diferente na discografia. Memories não se preocupa em seguir a evolução sonora do grupo, prefere oferecer uma mistura de toques estrangeiros e de retalhos esquecidos que unificam o álbum aos lançamentos passados.

Sonic Jesus

A lista de canções inicia-se com Spectrum Visionary, uma faixa sóbria dentro do estilo cru e ritmicamente ponderado da banda, é depois com Dance of the Sun que se ouve o primeiro sinal de progressão para novas fronteiras, mas os míseros dois minutos da música tornam-na numa simples exceção, quase um corta sabores fora de lugar. Porém, o seguimento com Reich (Original), versão original de Reich do álbum Neither Virtue Nor Anger, torna evidente que estamos perante uma nova faceta de Sonic Jesus. Esta versão é mais percussiva, curta e clara, falta-lhe o ronronar lo-fi da versão editada em 2015 e certamente não tem a mesma confiança vocal nem a guitarra nos dois minutos finais que tão bem completa a primeira versão lançada, para além de abdicar da melodia sedutora nas teclas e da segunda voz, isto faz dela uma abordagem mais despida a Reich, o que assenta bem neste álbum.

Continuando com Town e Whiskey Train, a primeira é acústica e interrompida por gemidos, baixa o andamento da fileira de músicas e corta o ritmo para a introdução de Whiskey Train, que evoca um country rock (até pelo nome) estranhamente veloz e pautado por uma pandeireta — aqui percebe-se pela primeira vez que o álbum faz algo de diferente; é quase The Arkhams em versão lo-fi. Logo depois, Noah vem dizer-nos que não é bem assim, se calhar não vamos pela via alegre, vamos antes ingressar pelo rock mais folk, e o registo torna a mudar, mantendo a pandeireta, voltando ao tom remanescente de Reich (Original). I’m Here é um granulado ritualista elementar, é possivelmente a música mais bem integrada no álbum, sublinhando a variedade musical melhor do que qualquer outra e abrindo alas para o destaque da gravação: The Klas. Esta última, com o sintetizador como fio condutor, junta uma magia dançável ao álbum; depois de ouvi-la é difícil querer mais do que a antecedeu, há uma viragem emocional.

The Klas cria um buraco negro que vai sugar tudo o que se segue. Heaven, depois de The Klas, vagueia na sede melódica e tem dificuldades em se afirmar, mesmo assim, não deixa de ter uma ternura idílica e um refrão apaziguante que se prolonga magistralmente no fim e apresenta o início forte de Khullam, que é conservado até ao final da faixa, mas nunca se supera. Monks aparece do nada, um soco na cara, soluça aos treze segundos e a partir daí a ideia de desleixo não nos abandona, embora seja possível agarrarmo-nos à percussão até ao seu desfecho. Cartaxo, título curioso, aparece como outra peça de conexão ao passado, é, no entanto, ofuscada pelas tentativas mais ou menos bem sucedidas das músicas anteriores de escapar ao buraco negro. Por fim, Love Again, melodia latina e percussão a acompanhar, conclui bem o disco num tom de moderação estilística da banda, apesar de Heaven ou Khullam parecerem mais aptas para o efeito.

Memories não é um Grace, mas não o tenta ser nem deve ser equiparado a tal. É um álbum revigorante para o grupo e para o ouvinte. A ideia de misturar as sonoridades passadas com o terreno inexplorado da experimentação nem sempre acerta, desequilibrando o resultado final. Ainda assim, esta é uma coleção de demos, de extras e de músicas recusadas, pelo que o equilíbrio nunca foi uma hipótese. A força de Whiskey Train, a identidade de Town, a sensibilidade de I’m Here, a tranquilidade de Heaven e a explosão dançável de The Klas fazem de Memories um disco variado e interessante e uma adição muito valiosa na discografia dos italianos de Doganella di Ninfa. Com esta coleção espontânea e com toques de irrequietude para tactear novos sons, os Sonic Jesus têm em mãos uma obra que tanto pode ficar para trás como uma coleção de memórias e de novas experiências como pode definir caminhos futuros.

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