Melhor espectáculo de Teatro de Janeiro (e breve análise deste e de outros)

por Comunidade Cultura e Arte,    2 Fevereiro, 2018
Melhor espectáculo de Teatro de Janeiro (e breve análise deste e de outros)
Rita Cabaço em Actores, fotografia de Estelle Valente
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Estar de acordo ou contra os tempos modernos, fazer apelo à memória ou fazê-la desaparecer pelo presente, dançar ou resistir à música, ter espírito crítico ou aceitação são alguns dos dilemas postos ao espectador (que não olhe só para a estética) durante o mês de Janeiro. Aqui está uma análise a partir de nove espectáculos de Teatro em cena em Lisboa no tempo referido e a escolha – difícil, por ter 3 fortes candidatos – do melhor. Whatever that means.

Em 2015 assistia-se a 127 Doses de Jean-Paul Bucchieri, exercício final de alunos da Escola Superior de Teatro e Cinema, que não sendo inaugural de um novo género de Teatro, sublima uma hipótese, porque não segue narrativa trágica ou cómica, nem se esvazia em prol da síntese conceptual. Em vez disto, excede-se no palavreado. Como possibilidade de nome para isto, escolhe-se um nome pouco elegante: verborreia. Nos espectáculos verborreicos (esta é uma tentativa de enquadramento de género, logo um acto questionável de subdivisão categórica) é difícil não pensar sobre velocidade da escuta e superficialidade da fala em possível relação com a visão e a escrita na era da Internet, com o utilizador médio em modo hiperligação/desvio/hipérbole, e onde cada frase é passível de ser título ou, no mínimo, hashtag. Em que é que esta invasão deste tipo de linguagem (da qual Beckett é avô) se torna problemática? No acto de desenvolvimento de um tema: se em Jean Paul-Bucchieri em 127 Doses, ou João Pedro Mamede sobre Spregelburd em A Estupidez de 2017, a verborreia é o próprio tema; noutros encenadores com outras premissas de trabalho (em análise, Maria João Luís sobre escravatura laboral em 150 Milhões de Escravos e Rui Catalão sobre a construção de uma cidade baseada em recolhas jornalísticas não-profissionais em Jornalismo Amadorismo Hipnotismo) este lado quase babilónico da linguagem falada faz com que o cerne nas questões desapareça.

Teresa Sobral e Lígia Soares em 150 Milhões de Escravos, fotografia de Pedro Domingos

A premissa de Maria João Luís é um acto de resistência aos tempos (Denunciar a nova escravatura infantil foi o objetivo de Maria João Luís in Observador). Criticar hierarquias classistas não é de todo um acto de conformismo ou conforto perante o agora, porém a sua execução espelha o tempo – actores que não se ouvem, cada um em sua batalha individual, ouvem-se títulos seguidos de títulos seguidos de títulos nos fragmentos de Soeiro Pereira Gomes, Tcheckov e Mickael de Oliveira, tornando a atenção do espectador áquilo que é dito no espectáculo incomportável, precisamente por ir de encontro a este hábito comunicacional – se tudo é título, nada importa mais que outra coisa, anula-se o sentido do espectáculo por paradoxo (quer ser resistente, mas é conforme), e embora sejam louváveis, além de todos os óbvios esforços de trabalho e a premissa, e ainda a luta bailada inicial entre Teresa Sobral e Lígia Soares, e a clareza (mental e física) de Beatriz Godinho, ou ainda o acto de dádiva à crucificação de José Leite no fim do espectáculo, o que resulta é um espectáculo confuso e paradoxal.

Jornalismo Hipnotismo Amadorismo, fotografia de Filipe Ferreira

Em Rui Catalão a questão é outra (muda acima de tudo a pontuação e a democracia). Em 150 Milhões de Escravos todos falam, ninguém se ouve, a cena perde-se. EmJornalismo Amadorismo Hipnotismo, um interroga o que os outros dizem de maneira a sintetizar e construir uma cidade baseada em vivências retiradas de modo jornalístico. Como as perguntas feitas seguem uma ordem caótica, perde-se o sentido das interrogações (a certa altura nem importam as respostas, por haver sempre um “porquê?” ou um “e se?” ou um “como assim?” em tom de mais de recusa que de curiosidade). Se a cidade que quer ser construída na versão de um jornalismo não profissional por Rui Catalão – boa premissa – é uma cidade de inquisidores a lembrar distopias futuristas (primeira parte do espectáculo) ou de relações banais (segunda parte do espectáculo), então cai em redundância, porque é a cidade que já existe. Teria valor enquanto retrato crítico dos tempos, perde valor por implodir na sua proposta seguindo os hábitos comunicacionais dos, lá está, nossos tempos. Um boomerang, portanto.

Isabel Milhanas Machado em A Câmara Ama-te, fotografia de Marta Santos

O género verborreico é também predominante em A Câmara Ama-te dos novíssimos Carolina Puntel, Isabel Milhanas Machado, Joana Ricardo, Rodolfo Freitas e Rosária Rocha, exercício a partir do (também verborreico) semi-absurdo/semi-político Martin Krimp. Não que leve a alguma conclusão fundamental (não tem de. Acima de tudo fazem-se afirmações e negações sem grande vontade de uma premissa inicial que espartilhe o espectáculo), mas há mais curiosidade na escuta, menos superficialidade – os cinco actores põem-se em causa e adensam os temas abordados. Qual o efeito disto? Quero saber deles sem tê-los visto antes. Cinco individualidades em formação, num espectáculo ainda esboçado, que acaba por ser uma discussão saudável partilhada. O objectivo é, possivelmente, crescer e mostrar esse crescimento, e isso também é fazer política – se a política é o pensamento sobre as cidades, os países e o mundo, então o pensamento identitário é o primeiro passo da política.

João Pedro Mamede e Vânia Rodrigues em O Grande Dia da Batalha, fotografia de Jorge Gonçalves

Há quem fuja à tendência verborreica. Jorge Silva Melo em O Grande Dia da Batalha e Catarina Vieira em Chego Sempre Atrasada aos Funerais Importantes propõem espectáculos de concretização mais polida, ainda que de famílias teatrais diametralmente opostas (em Jorge a base do trabalho é a relação texto de autor com actores; em Catarina é a pesquisa e experimentação, saindo o espectáculo das convenções narrativas, entrando no campo da performance).

Rúben Gomes em O Grande dia da batalha, fotografia de Jorge Gonçalves

O primeiro parte d’O Albergue Nocturno de Gorki, sobre classes baixas. Os actores de Jorge colocam a imaginação a trabalhar para recriar o ambiente do texto – imaginar-como-seria também é um verbo passível de pôr em prática. Jorge Silva Melo acrescenta-lhe ainda outros excertos – do qual é memorável uma enumeração de cidades visitadas pela destruição – criando um segundo espectáculo à boca de cena, à maneira de Brecht, mostrando-se nada alheado da realidade mundial. Faz ainda um tratado artístico sobre a sabedoria desses, “os animais”, os esquecidos, as classes inferiores. Este acto de recriação de (mais que uma época e geografia, uma classe) sofre possivelmente de alguma falta de pesquisa de alguns actores, ou seja, apesar da interpretação comovente do menino do acordeão de João Pedro Mamede, da graça simplória de Rúben Gomes e da fragilidade de Diana Narciso, o elenco peca por ser mais equilibrado que vivo, e se é no erro que está a vida, então o problema é a humanidade em cena ser, muitas vezes, pouco convincente por errar pouco. Mas há brio e urgência e clareza – qualidades raras e das quais os Artistas Unidos se fazem sempre acompanhar – e ainda um cenário giratório de Rita Lopes Alves, que é um mimo total.

Catarina Vieira em Chego Sempre Atrasada aos Funerais Importantes, fotografia de Joana Linda

Catarina Vieira não emoldura a vida, antes coloca o público em cena (algo tornado claro no início da zona nocturna do espectáculo em que os espectadores estão cercados de actores e luzes, e algo questionável por falta de aviso prévio). Se a ideia é dizer “isto é sobre ti, é por isso que estás aqui em cima”, e mesmo que seja um convite a que dancemos com eles, enquanto espectador escolho dizer que vai contra a minha liberdade colocarem-me num sítio num determinado molde que não escolhi. Aliado a isto, o facto de tocar nos espectadores com uma pena preta quando, no início, passava por eles, pena essa mais tarde usada enquanto arma, leva à sensação de que é um espectáculo em que o alvo político é cada indivíduo que escolheu pagar bilhete para assistir. Ainda que a concretização estética do espectáculo seja um misto de belo e horrível, com as profundezas do mundo citadino a invadir a cena (animalização, música tipo Berghain, luz nocturna impecável), parece-me infantil que este seja o seu alvo de resistência. Não que enquanto espectador queira ser embalado (como acontece, por exemplo, no engraçado mas ainda inicial Os Gansos de André Nunes), porém tenho de ser avisado quando sou colocado em cima do palco. O único texto usado surge no fim do espectáculo, uma espécie de crítica às pessoas que não gostam de ser enfiadas em sacos, portanto às individualidades. Se o apelo é que todos sejam 24/24 animais (ou pior, batatas) – soa mais a apelo que a crítica – logo a premissa é o fim do espírito crítico e a busca da comunidade sem diferença entre si que não a física. Porém, estas são armas maiores contra uma série de coisas, como o fascismo, basta estudar História. Embora um espectáculo belo de tão suado, e com o actor Tiago Vieira em estado de graça, ou é politicamente irresponsável, ou, tendo visão política, é perigoso (um perigo amoroso, do género, viva deus Baco e Afrodite, morte aos outros deuses), e nisto, demasiado impositivo.

João Silva em Sonho de uma noite de Verão, fotografia de Vitorino Coragem

Na era cómica de pós-verdade em que se vive, os jogos de enganos assumem importância, a saber em Os Gansos de Woody Allen por André Nunes e Sonho de uma Noite de Verão de William Shakespeare por Luis Moreira. Embora sejam jogos naturalmente previsíveis, como são espelho ora da realidade pública/política, ora da realidade privada/íntima de cada um, assumem urgência em reaparecer em cena, espelhando o ridículo de nós mesmos. Lets bring Chaplin back.

Nuno Lopes, Rita Cabaço, Miguel Guilherme e Bruno Nogueira em Actores, fotografia de Estelle Valente

Outro recurso – e uma arte si mesma – a ser trazido a cena é a dança, enquanto actor de unificação (Sonho de uma Noite de Verão e Chego Sempre Atrasada aos Funerais Importantes) ou espelho de solidão (150 Milhões de Escravos e Actores de Marco Martins, neste numa cena que ocupa o intervalo, protagonizado pela genialíssima Rita Cabaço – como esquecer os seus berros “É PRA DANÇAR!!!”?). Falar de solidão ao falar deste espectáculo é adequado, já que trata das memórias a solo e respectivas sensações de cinco actores, a já mencionada Rita e ainda Miguel Guilherme, Nuno Lopes, Bruno Nogueira e Luisa Cruz (substituída – graças a impossibilidade de fazer o espectáculo – pela também virtuosa e dedicada Carolina Amaral). Em Actores assistem-se a sketches: cenas de teatro memoráveis, momentos de humilhação e dor, derrotas pessoais e derrotas de personagens contra o maior inimigo possível, a Morte, assistindo-se já no final a uma chacina de actores aos quais só sobrevive Rita, que também executa as mortes. Há ainda uma simbólica chacina do público pós-ressurreição dos actores – depois mortos outra vez (e desta vez nem Rita Cabaço escapa) pelos aplausos do público. Com isto tudo convive ainda a câmara, criando um jogo entre efeméride (Teatro) e eternidade (Cinema), e a voz do encenador, que faz pedidos em tempo real.

David Esteves e Pedro Caeiro em Dédalo, fotografia de Alípio Padilha

Em Dédalo, novo texto de Miguel Graça, está também outra voz em cena além da dos actores (Pedro Caeiro e David Esteves), a voz do autor, em crise existencial e laboral constante (o termo é redutor já que é uma crise cheia de nuances cómicas, nascer de possibilidades e dúvidas diárias do mais humano possível), espectáculo também com forte apelo à memória, como Actores, exercício fundamental para a consciência da identidade e espírito crítico aplicado a si e ao mundo, estado mais promotor de sinapses que de lugares-comuns.

Miguel Guilherme em Actores, fotografia de Estelle Valente

E embora Dédalo apele à consciência de si mesmo e seja um acto de revelação do self tripartido entre actores e autor; e O Grande Dia da Batalha apele à consciência do mundo; em Actores faz-se tudo isto invocando o aparente paradoxo que nasce do conflito entre a ideia de identidade mutável de um actor (mundo exterior) e a sua coerência pessoal (mundo interior), falando ainda da dedicação ao trabalho, da ameaça constante da Morte, do ridículo dos dias. Isto, que vem acima de tudo das interpretações notáveis, faz com que este seja, possivelmente, o melhor espectáculo de Janeiro.

Artigo escrito por Luis Miguel Davies

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