“Marigold”: no trilho da humanidade dos Pinegrove

por Tiago Mendes,    2 Fevereiro, 2020
“Marigold”: no trilho da humanidade dos Pinegrove
Capa do álbum
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O novo álbum dos Pinegrove tem mais ou menos o sabor que esperávamos deles. É a natural continuação de uma banda cuja música se assemelha – e poderíamos dizê-lo a partir da perspectiva dos vários sentidos do nosso corpo – a uma mantinha que nos cobre o corpo num dia de inverno. É música acolhedora e familiar, que não contorna os becos escuros da nossa consciência, mas que consegue quase sempre sair por cima, sugerir-nos caminhos que nos libertem dos labirintos sombrios que insistem em prolongar-se dentro de nós. É música com sabor a prescrição médica – não de uma forma tão óbvia quanto o último álbum de James Blake, por exemplo, mas também não se ausentando totalmente dessa função.

É, desde logo, um álbum que parte da natureza e nos quer fazer ligar-nos mais intensamente a ela. Não só pelas imagens que nos propõe (uma árvore, o luar no chão do quarto, a flor no jardim, o animal na berma da estrada ou o insecto de patas para o ar), mas também pela sonoridade alt-country que explora de forma tão bonita. A música dos Pinegrove soa a qualquer coisa no meio deste triângulo: country desconstruído, indie rock ora mais calmo, ora mais propulsivo, e um toque a emo que nos remete para os anos 90. A responsabilidade deste último travo podemos atribuí-la em boa parte à voz de Evan Hall, o vocalista, letrista, compositor e alma de toda a discografia da banda de New Jersey.

Fotografia da banda

Há nos poemas de Marigold – e, de resto, nos dos restantes álbuns dos Pinegrove – uma desinquietante honestidade, uma fragilidade mais que latente. Essa frontalidade lírica nunca é activada numa frente distinta da música propriamente dita: manifesta-se também na expressividade da voz (quer na textura, no volume ou na forma como Evan parte ritmicamente a melodia da linha vocal), na progressão de acordes frequentemente inspirada e, neste álbum, no trabalho discreto de guitarras, os apontamentos sonhadores e meio ausentes que vão polvilhando este universo.

Escute-se “Dotted Line”, o primeiro momento de Marigold – infelizmente, devo confessar, também o melhor. Constitui uma montra do potencial dos Pinegrove, e é um tema a juntar aos melhores da sua carreira. A maneira como o início de cada verso da estrofe é metido na ponte entre cada frase – o “I” ou o “where”, logo aos primeiros segundos – é um dos melhores exemplos do carácter criativo de Evan enquanto compositor. “Dotted Line” é também um exemplo noutras duas frentes – a melodia da estrofe parece vir impregnada de um flow de profunda beleza, sem nunca o resolver. Não é racional e não conseguirei expressar melhor que isto, mas tenho de o assinalar. Mais fácil de registar é o momento em que, no final do tema, as guitarras finalmente respiram, livres (com o baixo a ajudar à festa); e, no virar da última progressão, deixam entrever um contributo novo, breve e emocionalmente propositivo. Apontamentos de uma outra guitarra numa frequência mais aguda, um contributo fora da caixa que não vai muito longe, mas que se basta a si mesmo.

Há outros grandes momentos em Marigold. “Moment” e “Phase”, dois dos três singles que antecederam o lançamento do álbum, são as duas passagens mais explosivas do disco. As harmonias vocais no final de “Endless” são outro dos bonitos destaques nesta paisagem; assim como a dinâmica interpelante de “No Drugs”. Na verdade, Marigold é uma colecção de bonitos temas (quase todos nos convencem), mas que eventualmente não casam da melhor forma na sequência que lhes foi dada. Ou que, infelizmente, nascem um pouco na sombra dos dois anteriores álbuns da banda: mais viscerais e com sabor a novidade.

Seria injusto, contudo, reduzirmos Marigold a um parente pobre de Cardinal e Skylight. Tem os seus trunfos, mesmo à luz dos anteriores trabalhos: a produção apresenta-se com maior qualidade e equilíbrio, e há um propósito de introspecção que apresenta uma vocação alternativa para o álbum. Marigold nunca quis ser a mesma coisa que os seus pais. É música que nasce das circunstâncias da vida de Evan e que, com um olhar redentor e de misericórdia para consigo mesmo, tenta trilhar um caminho de luz. Desta feita a partir de uma maior contemplação, mais que óbvia no exercício que ilustra o último segmento do disco (a faixa-título).

Quando em “Alcove” ouvimos “My friends in the east / they bring me peace”, esses versos parecem trazer com eles uma promessa de coisas boas para quem os ouve. A aproximação dos Pinegrove à consciência da nossa existência provoca um rasgo de consolação e identificação que faz uso dos melhores e mais simples instrumentos da música para nos explorar. Não há truques escondidos – há uma voz focada, uma dinâmica instrumental envolvente e uma composição com propósito e ânimo. É nesse sentido que afirmo que Marigold é mais que a tal manta que nos cobre no inverno; é um carreiro que nos leva a trilhar a vida com a cabeça erguida. “May no memory fold my head in”, remata “Dotted Line”. Assim seja também para nós.

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