Manuel Mozos: “Há para Sophia uma consciencialização democrática do valor da oralidade não só na poesia, como na arte em geral”

por Ana Monteiro Fernandes,    3 Dezembro, 2019
Manuel Mozos: “Há para Sophia uma consciencialização democrática do valor da oralidade não só na poesia, como na arte em geral”
Manuel Mozos / EVR ENRIC VIVES-RUBIO
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Antes da palavra escrita há a palavra falada e, de facto, se há algo que o documentário de Manuel Mozos, “Sophia, na primeira pessoa”, transparece, é a ligação da poeta do mar à oralidade e à forma como essa mesma oralidade está ligada, de forma íntima e indelével, à noção de democracia. Foi dessa forma, aliás,  que os poemas entraram no corpo de Sophia de Mello Breyner, apenas aos três anos, quando a sua “criada” [maneira antiga de se dizer empregada], lhe ensinou e a treinou para declamar a Nau Catrineta de cor. E, de facto, todos estes pormenores são importantes para entendermos o porquê  da importância que dava aos contos, fábulas e histórias infantis. Segundo o que a própria diz e está espelhado no documentário de Manuel Mozos, “as crianças ainda não estão divididas pelas castas culturais, tal como os adultos”. Alguém que compreende a importância deste factor, tem de saber e sentir, na sua génese, como se rega o embrião da  democracia e como esta é feita. Num texto seu escrito para o Semanário Expresso, “Em defesa da cultura”, é a própria que escreve, “NÃO PENSO que exista uma arte para o povo. Existe sim uma arte para todos à qual o povo deve ter acesso porque esse acesso lhe deve ser possibilitado através dos meios de comunicação. Primeiro os “aedos” cantaram no palácio dos reis gregos “o canto venerável e antigo”. Era uma arte profundamente aristocrática. Depois os rapsodos cantaram esse mesmo canto na praça pública. E Homero foi, como se disse, o educador da Grécia. Isto é: a cultura foi posta em comum. E por isso os gregos inventaram a democracia. A política começa muito antes da política.”

No documentário de Manuel Mozos, de facto Sophia volta à vida para nos dar, mais uma vez, as suas próprias palavras. Solar e nocturna ― para o realizador a poeta não é tão solar como a fazem crer ― impressiona, realmente, a quantidade de declamações de poemas em vídeo feitas pela própria, em paralelo com três entrevistas. Uma dessas entrevistas é inédita, conduzida por Francisco Assis Pacheco. Trata-se de uma particularidade da qual eu própria não tinha tanta noção. Tendo como mote o centenário da poeta e o documentário, feito para esse efeito, realizado por Manuel Mozos, falei com o realizador sobre todas estas particularidades, passando pelo descontentamento de Sophia com a realidade política e social pós-25 de Abril. É ler, portanto. Quem quiser ver por si próprio o documentário, pode fazê-lo através da RTP Play.

Em primeiro lugar, é óbvio que neste documentário há, somente, o recurso às próprias palavras de Sophia. Daí o título Sophia, na primeira pessoa. Não há entrevistas realizadas por si  a terceiros nem o recurso a estudiosos da sua obra.  É ela a falar por si própria. Porquê esta opção?
No início, colocou-se essa hipótese de introduzir depoimentos das pessoas que a conheceram ― familiares, estudiosos e pessoas ligadas ao estudo da obra de Sophia. Mas, na nossa investigação e pesquisa, percebemos que havia muito material em que a própria poeta não só lia ou recitava poesia como, também, havia bastantes entrevistas, programas para rádio e televisão em que ela participou e alguns filmes (não muitos) em que ela estava presente. Achámos que seria mais interessante fazer o filme tomando essa premissa de utilizar, apenas, a sua própria voz.

Uma das ideias mais vincadas no documentário é a relação da Sophia com a oralidade (antes da palavra escrita há a palavra falada). Daí, também, haver tantos vídeos de declamações de poemas, por ela.  Teve isso em atenção na forma como delineou o documentário?
Sim, precisamente. O facto da própria Sophia afirmar em várias entrevistas e escritos dela  a questão da oralidade, remetendo o seu início aos aedos gregos [rapsodos, cantores ou poetas da Grécia Antiga que recitavam acompanhados por uma lira]. O facto de, ao longo da história, toda essa questão da oralidade ser, realmente, de máxima importância para ela.

Sophia, na Primeira Pessoa (2019), de Manuel Mozos e Maria Andresen de Sousa Tavares

Engraçado que, para Sophia, a própria noção de democracia está, também, intimamente ligada a essa noção de oralidade.
Sim, Sim.

Com a sua própria ligação aos pescadores (tendo em conta que ela extraía a poesia também do mar), é como se ela quisesse dizer com isso que a poesia também podia ser a própria acção da vida, ao invés de um poema formalmente escrito.
Sim, sim, claro. E no filme também é focado o caso do pescador que ela conheceu, em Lagos, o Muchacho. Ela também refere, já na sua participação política pelo partido socialista, em determinados comícios,  que em vez de fazer discursos recitava poemas e eles tinham bastante impacto nas populações. Há para Sophia, realmente, uma consciencialização do valor da oralidade não só na sua poesia, como no facto da arte em geral poder ser transmitida através da voz e não da escrita.

Daí, também,  a importância que dava a contos e histórias infantis, pelas crianças não estarem, ainda, divididas entre castas culturais. Mas, na sua recolha, aconteceu-lhe deparar-se com material inédito? Por exemplo, no que diz respeito às entrevistas de arquivo de guiaram o documentário, penso que pelo menos uma é inédita.
Sim. Daquilo que acabei por utilizar, uma das entrevistas é completamente inédita. É feita pelo Fernando Assis Pacheco, cujo material em si não é interessante no sentido cinematográfico ou no sentido da própria qualidade da imagem, mas achei importante até por aquilo que a própria Sophia diz e responde ao próprio Fernando Assis Pacheco. Quanto às outras entrevistas a que recorri, há a  da Isabel Bahia e uma outra que não é tão presente enquanto entrevista mas da qual aproveitei mais momentos do programa que se baseia, realmente, numa entrevista ― apresenta muito espaço para a leitura feita por Sophia da sua poesia. Essas duas entrevistas eram bastantes conhecidas, passaram na RTP, mas passaram na época em que foram filmadas e, de algum modo, hoje em dia, para pessoas mais novas elas serão inéditas. Até  mesmo para as pessoas que as possam ter visto na época, pronto, de algum modo acho que fazem sentido como recuperação de materiais que, de alguma maneira, não tiveram ou não têm até agora uma visibilidade mais regular. São programas feitos em determinada época, que passam nesse momento e, depois, ficam nas prateleiras dos arquivos.

Mas o material é mesmo todo de arquivo, mesmo o mais recente? Ou houve filmagens propositais para o documentário?
Não, não. Há material filmado por mim e pela minha equipa expressamente para o filme. Depois, há um excerto de uma sequência que foi filmada recentemente por um colega e amigo meu a quem eu pedi e que,  muito gentilmente, me cedeu as imagens. Ele tinha ido à Grécia e fez filmagens para um filme dele, imagens que não tinha utilizado para o filme. Quanto ao resto, quase todo o material de arquivo, quer fílmico ou fotográfico, advém da proveniência quer da RTP, quer da cinemateca portuguesa ― do arquivo da cinemateca.

Sophia, na Primeira Pessoa (2019), de Manuel Mozos e Maria Andresen de Sousa Tavares

Mas foi delineando o documentário à medida que ia descobrindo o material de arquivo ou já tinha uma ideia, antes, do que poderia vir a ser?
Sim, ou seja, apesar de em termos de realização eu ter tido um prazo relativamente limitado ― tive alguns meses para poder pensar o filme e  fazê-lo segundo os compromissos que tinha com o centenário e com a própria RTP (este documentário foi feito para a RTP, partindo da comissão comemorativa do centenário do nascimento da Sophia e, portanto, o filme teria de estar terminado até à data da celebração, 6 de novembro) ―  isso foi conseguido. No início, apesar de gostar e de conhecer relativamente a obra de Sophia, sobretudo enquanto poeta, havia muita coisa que eu desconhecia e, realmente, na investigação e pesquisa feita é que fui percebendo, conhecendo e aprendendo coisas que, se não fosse pelo filme,  provavelmente ainda não conheceria. Como já disse, no início até se punha a hipótese de haver depoimentos de outras pessoas e assim, mas com o avançar da pesquisa é que fui começando a delinear o que é que o filme poderia ser. Ou seja, íamos montando o material que tínhamos e, à medida que encontrávamos sequências ou  linhas que nos pareciam interessantes, íamos filmando, montando e definindo aquilo que iria ser o filme.

Numa declaração sua ao observador afirmou que a poesia de Sophia não era tão solar como a fazem crer. A própria Sophia não é tão solar como a fazem crer. Isso também está visível no filme.Recordo um bilhete com esta frase a preto e branco, “meu signo é o da morte, porém trago uma balança interior, uma aliança de solidão com as coisas exteriores”.
Para mim, há um lado solar no trabalho de Sophia, tanto nos poemas como nos contos, mas também há um lado menos visível, menos exposto, bastante violento, mais noturno, mais fantasmático, mais cruel, mais secreto. Isso, realmente, pude conhecer melhor agora, de alguma maneira,  a partir da pesquisa e da investigação do trabalho da própria vida de Sophia, e pareceu-me interessante essa ambivalência que, de algum modo, poderia ser menos óbvio para as pessoas ― esse lado mais negro, mais soturno, mais misterioso e secreto que encontro na sua obra. Mesmo enquanto mulher, há um desencanto latente com certas coisas, nomeadamente com o seu papel  na política. Depois, há coisas mais pessoais às quais tive acesso mas que não vêm ao caso, mais íntimas. Achei curioso, numa das coisas que aproveitei, que quando ela escreve o conto A viagem, inicialmente ela pensa num conto infantil, duas crianças que se metem numa floresta  e vão perdendo coisas mas a certa altura ela modifica aquilo e são dois adultos, um homem e uma mulher, que fazem, igualmente, um percurso em que vão perdendo coisas até se perderem um ao outro. Tal  como está neste filme, ela relata isso e acaba por dizer, mesmo, que ela tinha escrito aquilo de uma penada, por assim dizer, mas que depois estava tão mal escrito que teve de reescrever. De alguma maneira queria ver-se livre daquilo, ou seja, estava escrever sem pensar. Para ela, enquanto escritora, era, realmente, doloroso. Achei muito curioso, tendo em conta esse seu lado mais solitário, mais nocturno. Acho que quem lê a obra dela, no seu todo, pode encontrar muita coisa que não é tão solar, tal como é colada a imagem.

Sophia, na Primeira Pessoa (2019), de Manuel Mozos e Maria Andresen de Sousa Tavares

Uma questão incontornável, focada igualmente no filme, é o seu descontentamento com a política e sociedade pós-25 de Abril. Houve algum cuidado especial no trato dessa questão?
Até havia bastante material mas, depois, acabei por retirar um bocadinho porque como ela própria se vai afastar da questão política, se calhar não fazia tanto sentido dar-lhe tamanha importância. Aquilo que para mim me interessou mais foi, realmente, esse posicionamento de mulher enquanto actuante da vida de um país, mesmo antes do 25 de abril. Falo da questão da libertação dos presos políticos, esse lado que ela sempre defendeu, assim como a vontade de dar voz a pessoas com menos possibilidades de a terem, como o caso de António Muchacho. Portanto, para mim, isso já são marcas de um posicionamento que, depois, obviamente com o 25 de Abril ― até por ser ter  tornado deputada ― vai encontrar expressão nas suas declarações, depoimentos e discursos. Há, no entanto, uma desilusão e um desencanto, no sentido em que a política se tornou numa arma demagógica. Deixa de ter a sua essência de pureza e de pensamento. Há um interesse maior no funcionamento partidário do que na luta do que deveria ser a política. Para ela, deveria ser, realmente, uma coisa em constante movimento, baseada na dialética, dinâmica e na partilha por todos.

Relembrando de novo o lado solar e soturno de Sophia, isso guiou, de alguma forma, o modo como dirigiu a luz no documentário? Porque está mais centrado no nascer e no pôr-do-sol, não nas horas em que a luz do dia está mais forte.
Claro, claro. Houve, à mesma, algumas limitações  no que diz respeito às imagens porque não poderia filmar tudo o que gostaria. Mas as opções, por exemplo, para filmar o mar ― obviamente poderia filmar às 14  ou 15 horas da tarde quando o mar está mais iluminado pela própria luz solar ― recaíram nas imagens e planos que foram filmados ao nascer, pôr- do-sol ou mesmo à noite. No que foi filmado expressamente para o filme, quisemos criar, de alguma maneira, um lado que não fosse completamente luminoso.  Relativamente às imagens do plano geral sobre a Ribeira do Porto ou os jardins que, actualmente, pertencem ao Jardim Botânico do Porto (a antiga casa dos avós), assim como o mar nas proximidades de Lisboa na Granja, fomos filmar em horas que não tinham esse lado tão luminoso que, eventualmente, seria mais expectável.

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