Manuel Cardoso: “O humorista não deve ser uma figura endeusada e, sim, manter-se sempre inseguro”

por João Pinho,    21 Fevereiro, 2019
Manuel Cardoso: “O humorista não deve ser uma figura endeusada e, sim, manter-se sempre inseguro”
Manuel Cardoso / Fotografia de Pau Storch – Bunchofproductions
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Os humoristas têm cada vez mais impacto na nossa sociedade. Há quem diga que a qualidade do humor está dependente da qualidade dos espectadores, ou que, na realidade, os últimos se moldam consoante o humorista. Independentemente de quem tem razão, a crescente popularidade dos mesmos fez com que, no presente momento, já não se faça só humor nas grandes cidades, em teatros, na rádio ou na televisão. Desta forma, surgiu a ideia de entrevistar um humorista nacional em ascensão, Manuel Cardoso, e perceber como é que ele olha para as novas dinâmicas. Começou cedo a fazer stand-up e, em conjunto com mais três jovens, produziu sketchs que passaram na SIC Radical. Continuou a produzir os seus vídeos no Youtube e acabou por investir na rádio, com o Pão Para Malucos na Antena 3, e a escrever crónicas na Sapo 24. Desde a realização desta entrevista até à data presente, Manuel Cardoso fez stand-up no Levanta-te e Ri e é um dos guionistas do novo programa Gente Que Não Sabe Estar, apresentado por Ricardo Araújo Pereira.

Um dos pontos negativos do programa Levanta-te e Ri que algumas pessoas costumam referenciar é o envelhecimento do público. Achas que a questão do culto tem como problema não conseguir renovar o público? Sendo tu jovem, à partida o teu público alvo será da tua idade e se não existe essa renovação pode ser mais complicado fazer stand-up.
Acho que não podemos obrigar-nos a segmentar o público para quem trabalhamos. Às vezes, parece que temos um preconceito com os mais velhos, de que já não captam as piadas. Eu senti que ali havia tanto humoristas da nova escola, o caso de mim e do Dário, como também mais velhos, e o público não estranhou propriamente.

Ou seja, não houve um corte, vamos pôr assim.
Sim, nem só “eu gosto é do Rocha” nem “eu só quero ver novos”. Foi importante para acontecer uma espécie de passagem de testemunho. Portanto, é bom que haja esta diversidade de humoristas que não façam só um certo tipo de humor. Assim, as pessoas não vão moldar a imagem do Levanta-te e Ri consoante esse humor. Acho que nós, os humoristas, não devemos ter o preconceito de achar que o Levanta-te e Ri é muito velho e que, portanto, a minha geração não deve ir.

Então achaste que a fórmula resultou? No podcast do Dário Guerreiro (Môce dum Cabréste), o próprio falou da sua ida e partilhou que sentiu um choque ao perceber como a máquina da televisão funciona: existem sempre dois objectivos que estão em choque um com o outro. Por um lado, as audiências e por outro, tentar trazer saúde ao humor. Haver mais stand-up é naturalmente uma coisa boa, mas não sentiste na pele que existia uma competição com outro programa concorrente na hora de transmissão?
Sim, este ano tenho trabalhado mais em televisão e sinto isso sempre que estou em contacto com este meio; é um meio selvagem, de luta. Estamos a falar de televisão generalista, se quiseres criar conteúdo de culto, não é nessa plataforma que vai acontecer. Tens possibilidades de fazer conteúdos de culto para a internet e até para outros canais, se houver esses convites. Mas na generalista, em horário nobre, não é que seja obrigatório ganhar, mas queres, pelo menos, estar na luta. O Levanta-te e Ri é um programa de televisão e faz sentido que seja trabalhado como um programa de televisão onde há stand-up e onde as coisas são feitas sobretudo para o espectador, porque não são as 700 pessoas que fazem ou produzem o dinheiro para que o programa continue a existir, mas sim as 800 000 que vêem em casa. Apesar de tudo isso, é um programa bastante livre, não tem propriamente grandes limitações temáticas.

Ele até falou muito do tempo do ensaio.
Sim, que é uma coisa muito triste que uma pessoa tem de fazer, que é ensaiar em frente da câmara, sem ninguém.

Ele falou ainda da questão de serem obrigados a retirarem tempo.
Lá está, em televisão é tudo contado ao segundo. E não me choca minimamente. Podem existir programas de stand-up bem melhores do que o Levanta-te e Ri, que está de facto datado do ponto de vista de grafismos, como toda a televisão em Portugal: está datado em duração, se calhar é muito grande. Porém, esse calculismo televisivo existe em qualquer lado, acho que nos Estados Unidos existe cinco vezes mais e é bom porque é com várias pessoas a trabalhar para que aquilo que funcione, que faz com que as coisas funcionem em televisão. A televisão é um formato que, lá está, tem muitas regras .

E tu sentiste isso, ou seja, que é uma realidade em que há coisas que não vale a pena tentar combater, porque é assim e se não fosse assim provavelmente nem existiria?
Sim, imagina que ia lá um gajo e fazia 15 minutos, outro 7 e outro 25. Depois o intervalo não podia aparecer porque ele não saía de palco… Isso em televisão não é possível.

Mas tu sentiste essa frieza também na TVI, com o programa Gente Que Não Sabe Estar?
Não, é diferente. Mas só para fechar esse capítulo: a televisão é um meio tão competitivo ao ponto de eu entrar em palco quando nem sabia que era para entrar. Eu tinha a minha ordem, que era depois do intervalo, e de repente estou muito tranquilo no camarim, a pensar que ainda tenho 40 minutos, a ensaiar só porque sim – aquele ensaio nervoso – e, de repente, chega a produtora e diz: “Manel, vais entrar em 30 segundos!” e eu “Não, você está a brincar, isto não é bem assim”. E depois manteve a cara de quem estava a falar a sério, que houve umas mudanças porque estavam outros dois programas em directo e um deles ia para intervalo, então tínhamos de continuar para agarrar as outras pessoas que estavam a ver. E eu imagino ali o Daniel Oliveira a ver um dos ecrãs e a pensar “Mete o puto! Lixa o puto!”. É um bocado frio, ou seja, aqui não há aquele estatuto. Acho que é sempre assim na televisão, és parte de uma engrenagem gigante.  É claro que para o ego do artista não faz bem seres visto como uma parte, gostamos de ser o centro, mas por outro lado também gosto desse pânico, dessa pressão, de alguma dependência de resultados, não que isso influencie o conteúdo.

Então, a questão de encurtar o tempo significa que podes até ser mais produtivo na mensagem que estás a transmitir?
Sim, testa a tua capacidade de adaptação e, naquele caso, de síntese. Não que eu tenha tirado muita coisa, ou seja, era para aparecer lá com 12 minutos e no ensaio eu fiz 13, e não pode mesmo ser 13, porque aquilo está contado ao minuto.

Mas correu bem?
Sim, acho que correu fixe. Não é uma cena que eu me imagine a fazer todos os dias como eles faziam antes, mas é bom para aproximar o stand-up de um público mais genérico.

Mas não farias como Manuel ou como humorista? Ou seja, tu neste momento não queres investir nisso ou achas que nenhum humorista se devia estar a desgastar?
Nenhum humorista devia fazer o que na altura se fazia no Levanta-te e Ri, que era todas as semanas com um texto novo que não era postado em lado nenhum, feito ao vivo, em directo para milhões de pessoas. Para se fazer stand-up tem de se testar e ir limando. Acho que o stand-up deve ou pode estar na televisão, como acontece em specials com vários humoristas na Netflix. Há muitos humoristas que rebentaram e não foi porque começaram a encher muitas salas, foi porque apareceram em conteúdo audiovisual. Por exemplo, o Daniel Sloss, que fui ver à Escócia, em Edimburgo, onde já era bastante conhecido. E lançou dois especiais na Netflix e agora faz tranquilamente uma tour por onde quiser.

Apesar disso é muito diferente porque é feito de propósito para aquilo.
Certo e tecnicamente o Levanta-te e Ri ainda pode melhorar bastante. A televisão portuguesa está um bocado refém do público que a vê e não há grande coisa a fazer. Tem alguma dificuldade em arriscar.

Ou seja, se agora o Levanta-te e Ri não voltasse, também não existiria nada.
De stand-up na televisão, exacto. Resumindo, é isso. Eu prefiro que exista o Levanta-te e Ri, a que não exista. Mas podia melhorar em vários aspectos, com certeza. Na altura foi uma aposta completamente arriscada e agora regressar também é arriscado, num momento em que facilmente uma piada pode gerar bastante prejuízo moral para um canal.

Por exemplo, se publicasses no Youtube algo de que as pessoas não gostassem, paravam de seguir. Mas isso não aconteceria em televisão, as pessoas paravam de ver o Levanta-te e Ri, se dissesses algo mais sensível? O público da televisão é diferente, tu próprio já admitiste que não és consumidor da televisão. Ou seja, são dois públicos diferentes, apesar de tudo.
Sim, acho que o público da Internet se exprime mais, em termos de grau de indignação.

Mas achas que é por ser mais jovem ou é unicamente por causa da plataforma em questão?
Acho que as plataformas puxam. Também podes comentar a televisão, mas unicamente para as pessoas com quem estás a ver. Ver televisão também é uma actividade mais conformada, mais passiva em comparação com a Internet. Uma pessoa está de televisão ligada, está com a família e está a ver. Uma pessoa põe vídeos para a Internet e a tendência é editar e pôr música por trás porque é uma grande batalha pela atenção. Na televisão não, para não falar das pessoas que têm 4 canais e têm poucas hipóteses, e mesmo para quem tem os 200, as pessoas andam muito à volta daqueles 7/8 primeiros, sedo que é uma batalha menos sangrenta do que na Internet. Lá está, se calhar as pessoas não se indignam tanto. Se bem que há pessoas que devem ter feito queixas por causa do Levanta-te e Ri.

E tu consideras que o novo programa onde agora estás também é arriscado? Porque é um formato que ainda não tinha sido feito em Portugal.
Nós não queremos reclamar para nós essa exclusividade do formato, porque já houve alguns no passado e até no presente; há também o Inferno no Canal Q que agora é só duas vezes por semana, mas antes era diário. E com os meios que temos, estou a falar de estar na TVI às 9 da noite de domingo, que é o máximo de horário nobre que há. Já fizeram um programa semelhante a este, mas era somente durante as eleições e era diário, uma espécie de happening que tinha impacto, mas que depois saía e no fundo deixava as pessoas órfãs de só ter a política. Agora este aqui, por ser semanal, o nosso objectivo é que se torne quase como um ritual, chegar ao domingo e quem acompanha a nossa realidade política estar ali a ver qual é que é a perspectiva destes gajos.

Mas não achas que havia um vazio? Apesar de existir um ou outro como já referenciaste (Inferno).
Sim, mas é um canal de nicho, com pouca audiência. Para além de que qualquer coisa que seja feito com o Ricardo Araújo Pereira tem mais impacto. E ele tem esse ascendente para poder fazer esse papel sem que lhe caiam em cima com acusações de sectarismo ou de agenda. E aliás, nós tentamos: não é bater em todos, mas todos fazem coisas ridículas.

Quando dizes todos, estás a falar de personalidades?
De tudo. Não é um programa de esquerda, nem anti-governo. Por exemplo, há aquela piada que é aquele género de humor que é um bocado preaching, e sempre houve casos de humor preaching  e às vezes até os melhores entram um bocado nisso, mas que nós tentamos evitar ao máximo. Por acaso, no outro dia, aconteceu uma coisa que me deixou um bocado incomodado, era uma coisa qualquer sobre a greve dos professores e a questão da carreira, e o Ricardo ali a meio disse “Professoras de físico-química”, ou uma cena assim, e houve logo uma senhora que começou a mandar vir. Percebo, porque relacionas-te com isto e é uma coisa que te choca, mas quanto menos comício isto parecer, melhor.

O objectivo dele também nem era especificar, disse química como poderia ter dito outra coisa qualquer.
Exacto, quanto mais referências tiver o humor melhor. Ou seja, a senhora é professora e acabava por ser uma defesa dos professores. Mas nós não estamos ali a fazer política.

O formato, como tu tinhas dito não é novo e lá fora é muito comum, se calhar o mais parecido que conheço seria o do Gregório: também escolhe uma temática e investe. Mas é interessante como nós passámos por tantos anos de corrupção e as pessoas estavam irritadas, mas nenhum humorista investiu nisso. Por exemplo, o Ricardo no Governo Sombra, naturalmente satiriza e goza com determinadas situações e personagens, mas era o que de melhor nós tínhamos. Acho que é importante ninguém fazer uma bandeira, porque isso também te limita, senão tornas-te quase como o fim da carreira dos Homens da Luta. Quase que eles se tornaram mais activistas do que humoristas, ou era essa a ideia que as pessoas tinham.
Espero que não seja esse o rótulo que coloquem ao programa, de activismo, ou que dêem uma excessiva importância ao que ali é dito como um facto político porque sempre que olhamos para um tema é sempre “Porque é que isto ridículo? Porque é que isto não faz sentido?” e não “Porque é que isto é altamente injusto? Como é que agora vamos dizer às pessoas como é que se devem sentir e defender desta injustiça?”. Não, é fazer humor sobre aquilo. No fundo, acaba por ser um resumo da semana, com uma perspectiva diferente. Nós temos de trabalhar isso melhor em guião, é que às vezes as pessoas não estão bem a par e às vezes precisamos de uma contextualização. E isto não é condescendência nenhuma.

E de que forma é que sentiste isso? Foi através do não-aplauso ou da gargalhada?
Não, temos de estar com o público que lá está e às vezes partimos para a análise de um assunto sem o explicarmos convenientemente. Tem mais a ver connosco, nós passamos a semana a ver notícias e já tivemos horas a pensar naquilo. Por exemplo, o caso do bairro da Jamaica. Há pessoa que se calhar não apanharam isso. E a leitura que temos é das redes sociais, do Twitter, em que toda a gente é muito informada. Não estou a dizer que o público é pouco informado, mas às vezes, e já aconteceu nos programas que já fizemos, repararmos em coisas que escapam, nem que sejam alguns pormenores.

Este programa exige também uma certa actualidade da parte dos espectadores, não é de todo directo, à partida.
Sim, também não queremos ser o explicador do povo.

À partida, uma pessoa que vai ver, sabe que tem de estar a par do que aconteceu durante a semana.
Não quero dar desculpas, mas é a actualidade, estamos sempre naquela “o que é que vai acontecer? o que é que não vai?”. Às vezes estamos no início da semana e “Vamos fazer isto!” e depois não dá porque o tema deixa de interessar. E a política portuguesa é muitas semanas desinteressantes, em que nada se passa.

E depois se for preciso numa semana dá tudo.
Exacto. Por exemplo, na semana passada não se tinha passado muito e nós fomos pegar numa coisa de Tancos, que essa assim é tema para 5 anos. É um tema muito sério, mas tem muita piada, e tem muito sumo e há sempre novos detalhes; é uma boa história. Fazem falta, por vezes, boas histórias. E a ideia que nós temos no Gente Que Não Sabe Estar é mesmo em contraponto com os políticos que sabem estar e que, ultimamente, têm sabido estar demasiado para aquilo que nós precisamos; precisamos que eles se espalhem ao comprido mais vezes , que lancem sound bites descabidos para nós pegarmos. Espero que não seja um país, em que venhamos a perceber daqui a uns meses que não pode ter sátira política porque as pessoas não se dão ao ridículo. Não, espero que se dêem mais.

Quando tu dizes que não se dão ao ridículo, significa que estão a fazer o seu trabalho, estão a ser profissionais?
Sim, não deixa de haver razões para haver o programa, nós encontraremos. Acho que não é fácil fazer a política portuguesa parecer interessante. Especialmente no momento actual, em que há um governo que tem alguma oposição em alguns sectores da sociedade, mas em que o partido da oposição é muito fraco a fazer o seu papel. E, portanto, é mais fácil fazer humor em anos de profunda crise.

Apesar de tudo, as pessoas podem não gostar, mas este governo não suscita, na maioria, uma irritação ou um fervor.
Lá está, é um governo que não tem tido como teve o anterior: manifestações de 1 milhão de pessoas. O contexto também é completamente diferente, com certeza que há muitas pessoas insatisfeitas, mesmo o contexto mundial não é de tanta crispação social.

Então o objectivo seria fazer sempre sobre Portugal?
Sim. As crises dão grande comédias, é óptimo ser humorista, hoje em dia, nos Estados Unidos. E mesmo tirando a parte de viver realmente com aquilo, todos os dias há tema, para além de ser um país muito maior, com muito mais pessoas que se reconhecem passíveis de fazer asneira. As pessoas estão muito engaged, porque estão a sofrer e têm de estar a acompanhar, como sempre acontece com um grande evento ou uma coisa que pode mudar o panorama político. Qualquer pessoa que não se interessasse pela política esteve a ver a eleição do Trump, ou qualquer pessoa que não acompanhasse a actualidade, como nos incêndios de Pedrógão. Acima de tudo, esteve a ver porque lhes tocou no coração. Quando é só a real politic, business as usual, é diferente tornar a política interessante.

E qual é que a tua opinião quanto ao político português? Achas que a generalidade dos políticos estaria disponível para participar no programa e até se rir das suas próprias estupidezes? Ou, por outro lado, sentem mais pressão para serem formais?
Pelo contrário, acho que sentem cada vez mais a pressão para serem descontraídos. Ainda não convidámos, nem houve nenhum convite formal para nenhum governante vir – pelo menos não está agendado para já – , mas acho que gostariam de vir porque humaniza o seu papel e a pessoa em si. Quando o Trump foi ao Fallon, foi uma péssima decisão do segundo, mas por outro lado, não deixa de ser alguém que viria a ter bastante poder num programa descontraído, onde é criticado.

Mas porque é que achas que foi uma péssima decisão?
Quando se convida um político para o programa, é suposto pô-lo em causa.

As pessoas estão à espera de uma pergunta constrangedora.
Exactamente e é esse o equilíbrio que se tem de ter, não vais convidar uma pessoa para um programa que é um programa de conversa: não é um crossfire, não é um programa de política, não é uma entrevista séria e, depois, puxas o tapete. Mas com o que se sabia dele, não se pode olhar para o lado e fingir que aquele é só o Donald Trump, um mero bilionário engraçado

E seria interessante vocês terem, no programa, convidados?
Eventualmente vamos ter… aliás, de certeza que vamos ter. Quando for diário, na altura das eleições, vamos ter convidados constantes, até porque há mais temas para pegar.

Quanto tempo é que demora preparar o programa?
Normalmente não podemos começar a escrever antes de acontecerem coisas, então basicamente segunda e terça não vamos para o escritório, quarta almoçamos e debatemos os assuntos, quinta pensamos como vamos abordar, sexta aproveitamos para filmar alguma coisa de antemão e entre sexta e sábado escrevemos o guião.

Isso parece muito em cima da hora, cria uma enorme pressão.
Estamos muito dependentes do que acontece. Se provavelmente tivéssemos um programa quinta provavelmente surgiria algo entretanto e teríamos que retirar outras coisas.

Passando agora para o teu stand-up. Olhando para o teu cartaz surgiu-me a seguinte questão: serão as pessoas em geral uma farsa ou é algo que podemos relacionar aos humoristas?
É um pouco dos dois. É farsa no sentido em que que a maneira em que vivemos assenta muito nas aparências, tentamos forjar um estilo de vida que não é real ou então limitamos o nosso estilo de vida para se enquadrar na sociedade de forma mais popular.

E tu sentes essa pressão?
Sinto, mais até da perspectiva profissional do que pessoal. Existe uma pressão de mostrar mais da minha vida do que desejo. Antes os criadores de conteúdos eram uma minoria e agora parece que todas as pessoas são obrigadas a desempenhar um papel e a criar conteúdo de uma forma quase diária: as histórias, a lifestyle que tenta transmitir. E depois a forma como as outras pessoas olham para essas coisas, existe uma certa ansiedade ao se compararem com eles: os outros estão sempre a fazer coisas e a nossa vida é que é má.

É interessante porque os humoristas mais novos sentem mais pressão do que as gerações anteriores e isso pode dever-se ao facto de os próprios seguidores, que são da mesma idade, olham para o humorista como uma pop star.
Antigamente também existiam popstar, mas a forma de surgirem no meio era bastante diferente.

Mas antigamente não passava pela cabeça da maioria das pessoas querer saber o que é que o comediante estava a fazer num determinado momento. O importante era saber quando é que ele iria fazer uma coisa nova.
Faz parte dessa luta pela atenção mostrares coisas constantemente e essa constante nem sempre é interessante. Antigamente o produto era comédia, a matéria prima era a escrita.

Era mais clara a distinção entre a vida privada e a pública.
Exacto e não sentias a pressão de ser coerente. Ou seja, os dois eram distintos. A vida da maioria das pessoas é desinteressante inclusive a dos humoristas e é bom que assim seja, que exista uma ligação com a vida do resto das pessoas senão estás alienado da vida do cidadão comum, quais são as suas experiências.

Assim, estarias a falar de algo que ninguém compreendia.
E a ideia de pop star não cola bem com o conceito e a postura que o humorista deve ter na sociedade – não querendo estar a afirmar imperativos categóricos. O humorista não deve ser uma figura endeusada e deve, sim, manter-se sempre inseguro para poder questionar o que está à sua volta.

Não achas que as pessoas em geral não compreenderam que mesmo com o surgimento do Youtube e das redes sociais e uma relativa mudança na interacção com o público, a distância entre os dois continua, de facto, igual?
Sim, eu não tenho paciência, porque a minha vida, lá está, é suficientemente desinteressante. É angustiante ter de viver o momento de duas formas diferentes. Às vezes lamento, até porque saio prejudicado disso, mas sinto que o nosso trabalho já é altamente egocêntrico e faz com que o próprio humorista não consiga separar os diversos “eu” na sua vida.

De forma é que sentes que acabas por ficar prejudicado?
A verdade é que os algoritmos pedem um acto contínuo e se não publicar nada durante três semanas é como se tivesse morrido e a vez seguinte que criar algo já vai ser mais difícil chegar às pessoas. Eu já estive mais focado em números do que agora. Obviamente eles são importantes, mas eu sinto que as coisas acontecem de forma mais natural e orgânica do que propriamente estatísticas de redes sociais. Eu não quero ser um outsider e não ser popular. Naturalmente isso importa-me, porque tu precisas de um público para quem falar, há uma questão de subsistência em jogo.

E é por não te quereres fixar demasiado nos números de uma ou duas plataformas e nos seus respectivos algoritmos que acabaste por investir em diversos meios de comunicação: rádio, jornal, televisão?
Neste momento, estou nesses três meios e adoro ter tido essas oportunidades, porque eu gosto de trabalhar com pressão do que propriamente sozinho.

Quando dizes sozinho, só para clarificar, estás a referir aos vídeos no youtube, por exemplo?
Sim, exacto. Também tenho um podcast que não gravo desde Outubro e todos os dias recebo mensagens a dizer, “então, já acabou?”. A verdade é que sou muito preguiçoso e enquanto não tenho alguém a pressionar-me canso-me muito rapidamente. Preciso da obrigação “se eu não faço não me pagam”. Isto, porque também já estou há anos a trabalhar sem condições, a acordar cedo para ir trabalhar e não há dinheiro envolvido, a fazer stand-up para testar, a fazer coisas para a gaveta.

E sentes que agora os meios de comunicação finalmente já estou a absorver os humoristas?
Sim, porque eu acho que até deve haver uma combinação entre os meios tradicionais com os novos media. Especialmente porque os novos media têm pouco dinheiro envolvido. Não digo isto por ganância, mas se não há condições. É bom ter oportunidade para crescer com tempo, sem pressas e ainda poder falhar e passar algo despercebido. Só me vejo a ter mais mediatismo se também for capaz de aguentar com isso. Lá está, há bocado estávamos a falar do título “Farsa” e o nome advém da farsa que o próprio artista sente que é o síndrome do impostor: o que faz não tem valor, porque a própria exigência e perfeccionismo causa uma enorme ansiedade.

Então tu preferes crescer de uma forma mais natural ao invés do que aconteceu, por exemplo, com os Gato Fedorento?
Sim, mas apesar de tudo eles ainda estiveram um anos antes a crescer para o Herman, já tinham alguma experiência. Acho que tudo se resume à idade. Podem-me dizer que isso não interessa e que o que é relevante é a maturidade, mas eu sinto que ainda não a tenho. Não tenho a ânsia de ficar famoso antes de melhorar os meus grandes défice, desde a capacidade de escrever sobre uma maior variedade de temas até ao à vontade em palco ou no momento da entrega. Acho que não se pode pedir que as pessoas sejam perfeitas – existe uma opinião publicada desfavorável a alguns humoristas – e acho que isso advém de uma cultura fraca nesta área que não nos deixa crescer. Qualquer humorista que tenha um especial na Netflix testou aquilo cem vezes em bares, qualquer daily show tem quinze ou vinte guionistas muito bem organizados, com um legado de outros que estiveram lá antes. Eu quero ser um humorista, não quero ser um fenómeno. Neste momento, tenho trabalho e estou a escrever para outros, isso protege-me, não tenho a responsabilidade de ser a cara. O Manuel Esteves Cardoso tem uma boa frase que sumariza isto: primeiro acham, relativamente a pessoas ligadas à cultura, que és um génio, depois acham que já tiveste mais graça e, no fim, que devias morrer.

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