Loucas são as noites que passo sem dormir

por Romão Rodrigues,    10 Agosto, 2020
Loucas são as noites que passo sem dormir
Fotografia de Sven Scheuermeier / Unsplash
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Cansaço enrolado em três cobertores de lã. Lá, onde a coruja mora, cozinha, limpa a casa e realiza o processo inverso. A espécie notívaga, em bicos de pata, caminha em direção ao resguardo de quem repousa. Momentos antes do embater do nó dos dedos na porta, reflete e adentra na vaga silenciosa. Do outro lado da madeira, o breu dobra a beira do smoking preto, senta-se na poltrona encostada ao fundo do quarto e acende um charuto. O fósforo fricciona a pequena caixa, a chama erige-se vivaz e fleumática. O calor proveniente do movimento instala-se sobre os quatro cantos da sala, descreve o rastilho do rodapé e eleva-se. No exterior, o céu explana a raiva.

Do outro lado da rua, através de uma janela obtusa, o ambiente aquiesce, aos poucos, ao clarão. O fenómeno é observado na íntegra: o que começa por ser a luz pusilânime de um candeeiro a transbordar de intermitência, transforma-se em intensidade, dobrando cada esquina do compartimento e recompondo as lascas visíveis na parede. Move-se desenfreadamente, alterna o sentido com afã rapidez, clama por socorro sem induzir à preocupação. Os pêndulos desobedecem à configuração original, quebram o vidro do relógio e suspendem a paragem do tempo. A luz não altera o seu comportamento. A espera pelo amanhecer é ansiosa.

No passeio, um vulto quedado numa valeta. Estatura média-baixa, barba rija e eriçada, densa como a vegetação uma floresta e adornada com fios de cobre. Acelera-se o passo e sustém-se a respiração. O campo visual é reorganizado. As garrafas de whiskey ali tão sós. Uma vazia, outra pela metade. Afina-se a audição. Escutam-se cantares cambaleantes e nada cristalinos. A melodia, apenas composta por onomatopeias, sobrevoa o imaginário. O cigarro na mão esquerda, molhado e hirto, a galvanizar o trajeto envergonhado do que restava do fumo. Adormeceu pouco depois.

Na ponta oposta do bairro, a pândega. O jardim repleto de pessoas unidas por uma persona grata nos seus submundos. O gira-discos sintonizado numa cadeira de veludo e, ao seu estilo, a vilipendiar conversas fúteis de drink em punho, subindo de tom sempre que elas trespassem os decibéis pretendidos. A dança era uma constante, a cantoria assolava os que possuíam o intento de passar uma noite tórrida com o sono, os olhares rompiam a cognominação de “fortuitos”, a sedução era o passo seguinte para a assunção. Ao fundo, dois jovens com os corpos lançados sobre espreguiçadeiras: esgrimiam sobre assuntos totalitários em indefinições e crenças. Os copos esvaziavam conforme o salivar dos argumentos. E, solitária, uma índole feminina, sentada sobre a relva, em processo de criação — a caneta ortografa versos rápidos e dispersos pela sebenta — e compenetrada na deambulação do movimento circular do copo.

No escritório, na multinacional da cidade, apenas a lanterna do segurança responsável pela vigia do edifício. A luz hábil para escancarar as portas de cada sala e verificar, numa olhada ampla, se alguma irregularidade saltava à vista. No décimo quinto andar, o pânico. O elevador começou por exibir o desconforto, balanceando até ao destino. Cenário de thriller, sinistralidade no seu apogeu. O prefixo embevece o responsável e o mesmo tremelica. No ar, um odor acre e pútrido. O discernimento ordenava ao recuo, o passo acelerado e trémulo persistia. A luz encontrou a sala ao fundo do corredor, trespassou a soleira da porta, apontou para a poça de sangue sobre a imensidão de papéis atafulhados: um tiro na têmpora, uma identidade a menos e um fechar de olhos a mais.

Após um suspiro profundo, demarquei corretamente o livro. Era o único tripulante da nau da divagação. Remei até cerrar as pálpebras.

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