Língua morta, língua viva: uma controvérsia equivocada

por Frederico Lourenço,    4 Agosto, 2020
Língua morta, língua viva: uma controvérsia equivocada
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«Credo, línguas mortas!» foi o comentário espontâneo de uma amiga da minha mãe, quando lhe contei em 1984 que tinha decidido candidatar-me à licenciatura em Estudos Clássicos (que na altura se chamava Línguas e Literaturas Clássicas). Na verdade, eu teria podido candidatar-me a Línguas e Literaturas Modernas, porque tinha os exames de 12.º ano de Inglês, Francês e Alemão. Mas (instigado, é preciso dizer, pelo meu pai) virei as costas à licenciatura em línguas vivas e optei pelo osso duro de roer que são as «mortas»: Grego e Latim.

O facto de serem mortas não me fez impressão nenhuma. O curso do qual eu vinha, o curso de piano no Conservatório, era um curso onde estudávamos música que estava morta numa página impressa (música de Bach, Mozart, Beethoven, etc.), composta há muito tempo por pessoas que tinham morrido há séculos – e o que aprendíamos, como alunos de música, era que, no momento em que nos sentávamos ao piano para fazer soar a música (morta na página) do compositor morto, essa música tornava-se imediatamente viva. E quanto mais genial fosse a música, mais viva se nos afigurava. Não era preferível, para nenhum de nós, tocar uma sonata escrita nesse dia de manhã por um compositor vivo a tocar uma sonata escrita no século XVIII por um morto chamado Mozart. Aliás, o que muitos de nós sentíamos quando tocávamos uma sonata de Mozart era que ela acabara nesse momento de ser escrita: tal a sua frescura, a sua actualidade, a sua intemporalidade. E assim fazia-nos todo o sentido ouvir Sequeira Costa dizer numa masterclass na Fundação Gulbenkian que a sonata de Beethoven conhecida como «A Tempestade» era música do futuro. A humanidade ainda não tinha chegado tão longe como Beethoven chegou nessa sonata.

Por isso, não me fez impressão nenhuma dedicar o meu estudo a textos mortos, escritos por autores mortos há muitos mais séculos do que Beethoven, porque percebi imediatamente que, no momento em que me punha a estudar Homero e Vergílio, acontecia a mesmíssima coisa que acontecera no Conservatório com Mozart. O texto morto na página (escrito numa língua tão morta como é hoje a língua musical em que Mozart compôs) tornava-se imediatamente vivo ao ser lido. Afinal isso de «línguas mortas» não fazia, como insulto, o mínimo sentido. «Morto» e «vivo» não são antónimos. Pode uma coisa estar morta e, no entanto, ser viva. Esse é o mistério daquilo a que chamamos cultura.

A situação precária em que as línguas clássicas se encontram nalguns países (e as dificuldades de as ensinarmos a novas gerações que cresceram coladas ao computador e ao telemóvel e que, por isso, têm uma capacidade de atenção/concentração ínfima e ainda mais ínfima capacidade de memorização) tem levado à estratégia cada vez mais espalhada de ensinar latim como língua «viva». Esta metodologia consiste em ensinar latim exactamente como se estivéssemos a ensinar inglês ou qualquer outra língua moderna: o professor só fala em latim na aula e leva os alunos a adquirirem a competência valiosa de conseguir usar latim activamente, na oralidade e na escrita. «O latim não é uma língua morta!» proclamam os defensores desta metodologia.

E claro que não é uma língua morta: é, há milénios, uma língua em permanente evolução gramatical, como acontece às línguas vivas; e, como acontece às línguas vivas, a evolução gramatical não é alheia à componente geográfica (por isso o português falado em Portugal tem aspectos gramaticais diferentes do português falado no Brasil). O latim como língua viva evoluiu com toda a naturalidade e hoje chamamos-lhe, conforme as suas variantes geográficas, italiano ou espanhol ou português ou francês ou romeno. Podíamos até chamar ao português «latim», da mesma maneira como se chama «grego» à língua falada hoje na Grécia (que é tão evoluída em relação ao grego antigo como o português é em relação ao latim). Não faz sentido defender que o latim clássico é uma língua viva: vivas são as línguas em que se transformou.

Isto não é negar utilidade lúdica e pedagógica ao exercício de falar ou escrever em latim clássico. Quando eu era aluno do Conservatório, tínhamos uma cadeira chamada «Composição», em que eu pensei inocentemente que ia aprender a ser compositor! Na verdade, o que nós aprendemos durante três anos foi a compor corais tão parecidos quanto possível com os corais de Bach (por exemplo na Paixão Segundo São Mateus), em que estávamos proibidos de usar acordes que Bach não usou e eram penalizadas todas as situações em que, nos nossos exercícios de composição, transgredíssimos as regras a que Bach se ativera. Oitavas e quintas paralelas eram estritamente proibidas! Ai de quem as incluísse no exame final de Composição! Mas, ao mesmo tempo, como aluno de piano, eu estava a tocar obras de Debussy (para mim um clássico…), em que oitavas e quintas paralelas eram constantes. Porque é que eu, em 1980, estava proibido de compor algo que já estava nas composições de Debussy (que morreu em 1918) e tinha de me ater às regras da Paixão de São Mateus de Bach, composta em 1727? Mas acabei por perceber que se tratava de um exercício pedagógico útil – do mesmo modo como, mais tarde como aluno de Estudos Clássicos, percebi a utilidade dos exercícios em que éramos obrigados a escrever em latim sem transgredir as regras presentes nos escritos de Cícero (que morreu em 43 a.C.).

Dir-se-á que falar latim é pedagogicamente mais útil do que escrever latim. Que seja pedagogicamente útil, não duvido, pelo menos numa certa fase de aprendizagem. É um exercício lúdico e divertido, sem dúvida – e penso que devem ser apoiados os professores que, perante turmas que precisam de ser conquistadas para a causa das línguas clássicas, recorrem à metodologia de pôr a turma a falar em latim.

No entanto, como sabemos todos que já passámos pela experiência de aprender línguas modernas, quando queremos falar uma língua que não dominamos como língua materna estamos limitados àquilo que sabemos dizer. Não podemos dizer o que não sabemos. Ainda me lembro das conversas confrangedoras que eu tinha em alemão quando comecei a atrever-me a falar a língua: eu parecia um hamster numa roda, sempre a repetir as mesmas coisas, porque só conseguia dizer aquilo que eu já era capaz de dizer. Acabei por perceber que o caminho para dominar alemão mesmo a sério era tratar o alemão como uma língua morta: ler, ler, ler, ler, ler. Decorar a gramática toda. Memorizar vocabulário novo com disciplina militar. Por isso, num nível superior de aprendizagem de grego e latim, considero que o exercício de escrever (as controversas retroversões) é pedagogicamente mais útil do que o de falar.

O que não tira um milímetro ao gozo lúdico inerente ao acto de falar latim. A internet está cheia de latinistas amadores que professam a religião do latim como língua viva. Alguns cometem demasiados erros (para os meus ouvidos) para serem prazerosos de ouvir. Mas é sempre interessante ouvir italianos a falar latim com sonoridade italiana, espanhóis a falar latim com sonoridade espanhola, americanos a falar latim com sonoridade americana. Ainda que todos afirmem usar a pronúncia clássica, ao fim de poucos segundos percebe-se logo a nacionalidade deste moderno falante de latim. Há inevitavelmente um artificialismo num espanhol a falar latim que não existe num espanhol a falar espanhol.

O exercício de falar/escrever em latim é comparável, em última análise, ao exercício que nós fazíamos no Conservatório de compor à maneira de Bach. Mas se eu compuser «a sério» música à maneira de Bach, e compuser uma obra musical para ser estreada em público na qual só ocorram os acordes que Bach conhecia e aprovava, terei composto música bem morta. Esse é o paradoxo do «latim vivo».

No Conservatório diziam-nos que aprender a compor à maneira dos corais de Bach trazia consigo uma mais-valia: o facto de sermos capazes de usar a linguagem musical de Bach tornava-nos apreciadores melhores da música de Bach. Acredito que sim. Mas nunca senti isso na prática. A minha devoção pela música de Bach nada tem a ver com esses conhecimentos formais.

Os defensores da metodologia de ensinar latim como língua viva dizem algo de parecido: quem aprender a falar latim conseguirá compreender muito melhor os grandes autores clássicos. Em vez do exercício mental fastidioso de traduzir para a sua própria língua o latim que está a ler, o aprendiz de latinista conseguirá compreender o que está a ler da perspectiva de alguém que fala latim como língua viva.

No entanto, há aqui duas falácias: a primeira é postular que o exercício mental de traduzir é inerentemente fastidioso (pelo menos para mim não é: eu adoro traduzir mentalmente para português o que estou a ler em grego e em latim, não só porque acho divertido, como também para me certificar de que entendi até ao último milímetro o que estou a ler); a segunda falácia é que o bom domínio activo de uma língua abre automaticamente a porta à compreensão da literatura nessa língua. Quantos falantes de português como língua materna não abrem «Os Lusíadas» e dizem «não entendo a ponta de um corno». E quantos membros da comunidade crescente na internet de novos falantes de latim não se solidarizarão com o comentário que li no site de um dos gurus desta seita: «Scripta Ciceronis mihi displicent, nihil intellego! Utinam Cicero tam bene scripsisset quam bene tu loqueris!»

«Não gosto dos escritos de Cícero, não entendo nada! Tomara que Cícero escrevesse tão bem como tu falas», afirma este internauta. É como se os meus exercícios de composição no Conservatório fossem melhores que Bach.

Enfim: não há receitas mágicas para aprender grego e latim. Tudo depende também dos objectivos que nos propomos. Uma coisa é a actividade lúdica de participar em chats e sites na internet (ou em reuniões presenciais) onde nos podemos divertir a falar latim. Outra coisa diferente será sempre o objectivo de aprofundar a apreciação estética de Cícero ou Vergílio lidos (note-se: lidos) na língua original. E para isso, não vale a pena inventar a roda, porque o caminho para lá chegar está traçado há muito tempo: é fazer da leitura e releitura dos textos (e do Oxford Latin Dictionary, o recurso mais valioso que existe para a aprendizagem do latim) um acto de devoção diário.

Para finalizar, recordo uma conversa que tive aos 14 anos com Lanza del Vasto, grande amante da língua latina (e que, na sua juventude, tinha sido explicador de grego e de latim quando a família teve dificuldades financeiras). Perguntei-lhe quem era o seu autor grego favorito, ao que ele respondeu, para minha surpresa, «Plotino». Depois, a propósito da língua latina, ele disse que o facto de o latim ser uma língua morta lhe dava uma qualidade extraordinária – a de estar a salvo da banalidade do quotidiano.

Como a música de Bach, de resto. A verdadeira.

Na imagem, um «Capriccio» de ruínas romanas do pintor setecentista Giovanni Paolo Panini, que nos pinta uma Roma tão artificial como as melhores tentativas hodiernas de escrever e falar latim. E note-se que por ser artificial não deixa por isso de ser valiosa – e deliciosamente divertida.

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