Letizia Battaglia apontou a câmara à Máfia e o seu gatilho fez “click”

por Daniel Dias,    28 Novembro, 2019
Letizia Battaglia apontou a câmara à Máfia e o seu gatilho fez “click”
Fotografia: Letizia Battaglia
PUB

Kim Longinotto está farta de ver filmes sobre a Máfia a partir de uma perspectiva “muito estranha”. A realizadora londrina, de 67 anos, diz que somos sempre convidados a conhecer e simpatizar com o ponto de vista dos gangsters – por norma, homens “muito bonitos”, com o seu cabelo impecavelmente penteado e os seus “fatos incríveis” –, mas nem sempre vemos os efeitos secundários da sua conduta, “os corpos estendidos no chão”, “as crianças que estão a ir para a escola e encontram poças de sangue” no pavimento, a “mágoa que os assassinatos provocam”. Nem sempre vemos, no fundo, “as pessoas que foram suficientemente corajosas para enfrentar a Máfia”.

Shooting the Mafia, o filme que Longinotto traz à sexta edição do Porto/Post/Doc, olha para essas pessoas. Mais concretamente, olha para a vida e o trabalho de Letizia Battaglia, fotógrafa natural de Palermo que começou a trabalhar no jornal L’Ora em 1974, e que, durante quase 20 anos, documentou a vida na sua cidade e as maneiras como a Máfia siciliana a mudou. Uma fotógrafa que registou com a sua objectiva um “arquivo de sangue”, e que, como desabafa no documentário, pensa em queimar as suas fotografias porque “as pessoas acham que são lindas”.

Fotografia: Letizia Battaglia

Por telefone, Longinotto fala da “incrível tensão” que existe nas fotografias capturadas por Battaglia: se nelas há “coisas de extraordinária beleza”, há também “coisas de um tremendo horror e de uma tremenda tristeza”. A cineasta inglesa usa uma série de imagens de época para dar conta da presença da Cosa Nostra na Sicília, e, através delas, aponta para a “cultura de medo” a partir da qual a Máfia operava. Esse medo chegava aos fotojornalistas do L’Ora, que, diz Longinotto, foram expostos a “quantidades desumanas de violência” e conviviam diariamente com situações de grande perigo. Todas as noites, eles davam a volta ao quarteirão antes de regressarem à redacção porque tinham de ter a certeza que “não estavam a ser seguidos por ninguém”.

Para além da Letizia fotógrafa, activista e (mais tarde) deputada, Kim Longinotto também quis dar a conhecer a Letizia para lá do trabalho. O que definitivamente não foi fácil. “Eu consegui perceber que ela não queria falar muito da sua vida pessoal”, sublinha a realizadora de Shooting the Mafia. “A Letizia estava habituada a ouvir perguntas sobre as suas fotografias. Não estava habituada a ouvir perguntas sobre a sua vida pré-fotografia e a sua família”, refere Longinotto.

Ainda assim, Letizia mostrou um bocadinho do que se esconde por detrás da cortina, e, na primeira metade do documentário, o espectador acompanha o percurso que a levou ao jornal L’Ora e a uma vida passada de punhos cerrados. Ficamos a saber, por exemplo, que, conforme sublinha Kim Longinotto, “esta é uma mulher que vem de uma família muito conservadora”: o pai não deixava a filha falar muito com rapazes, não queria que desse continuidade aos estudos, achava que o lugar da mulher era em casa a tomar conta dos filhos. Letizia passou por “um trauma severo”, e, após descobrir a máquina fotográfica, apenas aos 40 anos, deu início a um processo de reinvenção total. “Ela construiu uma vida nova para si através de uma dedicação extraordinária ao seu trabalho, o que era impensável para uma mulher naquela altura”, reflecte a realizadora.

Fotografia: Letizia Battaglia

Letizia assinala em Shooting the Mafia que não foi uma “pessoa de verdade até encontrar a câmara”. Ao jornal The Guardian, diz que “a fotografia não muda nada”, que não põe um fim à violência ou à pobreza que capta. Por outro lado, no entanto, fala da “confiança” e da força que conquistou quando começou a encontrar na máquina uma aliada e uma arma de guerra: de repente, Letizia sentia que era capaz de expressar “a inquietude do mundo”.

Nas suas fotografias vê-se essa inquietude. Letizia contou com poucos amigos e companheiros de guerra durante os anos em que fotografou a actividade da Cosa Nostra em Palermo. Contou, por exemplo, com Paolo Borsellino ou Giovanni Falcone – o júri que fez de tudo para tentar caçar os “grandes peixes”, nomeadamente Luciano Liggio –, e chorou muito as suas mortes. Nem todos os que ousaram remar contra a maré conseguiram fugir da tempestade como Letizia. Muitos foram silenciados antes que pudessem sequer levantar a voz. “A Máfia podia facilmente ter eliminado a Letizia”, reflecte Kim Longinotto. Mas, por outro lado, provavelmente “os assassinos gostavam bastante que ela os fotografasse”: tinham quem os eternizasse, e tinham sobretudo quem ajudasse a propagar a tal cultura de medo de que a Cosa Nostra se alimentava.

Fotografia: Letizia Battaglia

Hoje, com 84 anos e “um cabelo rosa extraordinário”, Letizia Battaglia parece preservar a coragem que precisou de ter para trabalhar como fotojornalista numa Sicília dominada pela corrupção e pela tragédia. Reformada, passa agora os seus dias com um fotógrafo que é 38 mais novo. “Ela diz que repara na maneira como o mundo olha para eles”, observa Longinotto. “A Letizia colocou o trabalho à frente da família. Os filhos não concordam com as decisões que tomou ao longo dos anos. Ela teve de se habituar a não dar ouvidos ao que as outras pessoas dizem. Toda a vida dela tem sido uma luta”, conclui a realizadora de Shooting the Mafia.

O documentário mostra a caminhada conturbada e improvável de uma mulher que descobriu a fotografia quase por acidente, e que com ela encontrou uma arma de guerra. O seu gatilho não fazia muito barulho, mas as vidas e mortes que documentou imortalizam um sofrimento ensurdecedor.

Shooting the Mafia faz parte da Competição Internacional da sexta edição do Porto/Post/Doc. O filme foi exibido a 26 de Novembro no Teatro Rivoli e passa hoje, 28 de Novembro, no Cinema Passos Manuel.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados