‘Le Livre d’Image’: Godard questiona e mostra-nos a violência do mundo

por Diogo Lucena e Vale,    3 Setembro, 2018
‘Le Livre d’Image’: Godard questiona e mostra-nos a violência do mundo
‘Le Livre d’Image’
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Muito tem mudado no cinema nos últimos anos, embora, olhando para Jean-Luc Godard, se pudesse pensar o contrário: o cineasta, tal como há mais de 50 anos, continua a fazer do cinema mais urgente do seu tempo. Todavia, podemos constatar uma diferença na receção dos seus filmes, pois, se À Bout de Souffle (1960) foi – e ainda é – um êxito tanto comercial como crítico, as mais recentes obras do octogenário têm dividido tanto público como crítica. De um lado, os grandes elogios, do outro, toda uma gama de reações que varia entre acusações de incompreensibilidade (como se pode ler na crítica de Todd McCarthy, no Hollywood Reporter) e humildes declarações de derrota (como nos diz A.A. Dowd, no A.V. Club).

Se sobre estes últimos nada temos a dizer, aos anteriores poderíamos responder que um filme é tão incompreensível quanto alguém não procurar interpretá-lo. Não obstante a inegável complexidade deste trabalho, podemos tentar traçar uma linha de raciocínio que o percorre.

‘Le Livre d’Image’

À semelhança de outros seus ensaios anteriores, Le Livre d’Image é constituído por imagens de arquivo, sendo grande parte delas excertos de filmes. Estas imagens são frequentemente alteradas, ora alterando a correção de cor ou retirando o som. Estas alterações por vezes sublinham algum elemento ou reforçam aquilo que pretende ser comunicado, destacando-se, contudo, por invariavelmente expropriarem as imagens de parte da sua estética original, focando aquilo que elas comunicam independentemente disso, aquilo que poderíamos apelidar de o seu conteúdo.

O filme debruça-se sobre o tema do mundo árabe, mas inicia-se pela ilustração da violência que, desde a sua concepção, define a sociedade ocidental: a expressão “Arquivo como moral” é a chave de toda esta secção, refletindo claramente o método de Godard, que, ao trabalhar com imagens de filmes ou televisão, limita-se a reorganizar e editar fragmentos do nosso património cultural comum. A conclusão daqui tirada é que o ocidente é tão ou mais violento quanto qualquer outro lugar, pelo que a perceção quase bárbara que é tida dos povos árabes hoje em dia não pode ser fundada senão em preconceito e hipocrisia: “É muito fácil defender o fim da guerra, quando não vemos outro desenlace que não a nossa vitória”.

‘Le Livre d’Image’

Deste modo, Godard reconhece que ele próprio, enquanto membro da sociedade ocidental, é vítima desta errada representação, pelo que, na análise da sua visão, é imperativo tomar isto em conta, constituindo este um momento de honestidade intelectual raro no panorama cinematográfico atual. Esta diferença de perspetivas é eloquentemente acentuada por um momento em que duas narrações, uma vinda das colunas de som de cada lado da sala, se iniciam concomitantemente, uma pela palavra “aqui” e a outra, “lá”.

Chegado o momento de avaliar os fatores que mergulharam o mundo árabe na sua instabilidade atual, depois de um passado áureo, Godard encontra nas forças tiranas do capitalismo (e como uma tirania não vem só, nalguns regimes políticos) um enorme fator de desestabilização, dando o exemplo de como a desigual distribuição de petróleo entre os vários países da região, em condições de comércio mundial, colocou uma enorme pressão económica sobre os países com menores reservas. O povo foi colocado numa situação desesperante, que o levou a adoptar medidas desesperadas, tal como aconteceu já várias vezes no passado: “eles usam poderosas técnicas de controlo (…) as pessoas ficam sem outra hipótese que não recorrer a bombas. Da minha parte, estarei sempre do lado das bombas.”. No cerne desta exposição não está uma apologia da violência. A problemática é apresentada enquanto sintoma de um sistema insustentável a nível social, perante o qual é necessário acabar com um determinado discurso de culpabilização cultural.

‘Le Livre d’Image’

Na emocionante sequência que se segue aos créditos, Godard reflete sobre a sua prática, constituindo esta uma declaração de intenções que torna a cisão no público retratada nas primeiras linhas deste texto tão mais desconcertante. Entre ataques de tosse, com uma voz fraca que transmite debilidade, sobre imagens de um homem dançante retiradas de Le Plaisir (1952), o cineasta defende o trabalho da sua vida, a sua incessante luta pela utopia: “Tal como o passado é imutável, também as nossas expectativas do futuro o são.”. Até que o homem dançante cai. Longe de elitista, esta obra pretende falar com as pessoas, pretende intervir na sociedade. Apenas necessita que a ouçam.

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