Juízos sem valor

por Rui Cruz,    5 Março, 2019
Juízos sem valor
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Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Não percebo muito de leis, não sou especialmente fã de advogados (tirando os do Boston Legal. Denny Crane!) e só entrei uma vez num tribunal e para testemunhar a favor de um amigo que partiu a perna numa daquelas porradas de bar à filme, em que toda a gente atira coisas e ninguém sabe muito bem como começou, no entanto, nestes últimos dias, tenho lido mais acórdãos, notícias sobre processos e pesquisado juízes do que muito aluno do curso de direito. E tudo por causa do Neto de Moura, mais uma vez.

Já não é novidade para ninguém que Neto de Moura é… vá… digamos… hum… digamos que é um juiz peculiar no que toca a casos de violência doméstica. Digo “peculiar” porque acabei de viajar e estoirar demasiado guito em pints, o que faz com que não possa pagar advogados agora, senão diria que é uma besta que aparenta ter tanta competência para julgar casos envolvendo mulheres como o Ted Bundy. Ted Bundy esse que, caso tivesse apanhado um juiz como o Neto, muito provavelmente ainda estaria por aí a espalhar charme. E cabeças. O que é novidade é ver finalmente uma onda de gente indignada com isto, o que é óptimo.

Acontece que o problema é maior do que apenas um juiz e o Tribunal da Relação do Porto é pródigo em decisões “polémicas”. Aliás, vários tribunais do norte têm tido, ao longo dos anos, muitas decisões que são, no mínimo, discutíveis. De cabeça, e já nem falando em mais casos julgados por Neto de Moura, lembro-me do da jovem inconsciente violada numa discoteca e cujos dois violadores ficaram com pena suspensa porque estavam num ambiente de “sedução mútua”, o que é perfeitamente aceitável uma vez que já perdi a conta às mulheres que seduzi de boca aberta e a ressonar numa pista de dança e é assim que espero conhecer a mãe dos meus filhos; o caso do psiquiatra que violou uma paciente grávida, mas que foi absolvido porque não usou muita força e nesta coisa das violações há que dar apoio a quem o faz com carinho; o caso do dentista da Maia que abusou de uma miúda de 15 anos no seu consultório e que ficou com pena suspensa porque… bom… porque toda a gente precisa de dentistas e ele devia fazer um bom preço; o caso do agricultor de Famalicão que violou uma miúda de 14 e ficou em liberdade porque a rapariga já não era virgem e desconfio que fumava e tudo, como as putas; o motorista de Santa Maria da Feira que violou uma criança de 9 anos e ficou com pena suspensa porque “não há indícios de que possa ser um predador” uma vez que nem sequer tinha visão térmica ou conhecia o Schwarzenegger… e isto só de cabeça, repito!

Percebe-se assim a admiração de Neto de Moura ao ser agora confrontado com tantas opiniões críticas à maneira como exerce o seu ofício, até porque tendo em conta a amostra, ele apenas se limitou a seguir a tendência do seu local de trabalho. Acredito mesmo que, tendo em conta as suas estatísticas quase Ronaldescas nisto das decisões “polémicas”, ele estivesse mais preparado para receber uma proposta para dar o salto para uma Arábia Saudita, ou para um outro qualquer país da Premier League de misoginia, do que ataques à sua competência e moralidade, principalmente tendo em conta as reacções que o caso Mayorga teve, ainda há bem pouco tempo, na nossa tão justiceira sociedade. Daí que não me espantassem os processos que decidiu meter a quem o criticou, por menos razão que o Netinho que não passou 1001 noites de amor com você tenha para o fazer.

Já o que me espanta é a maneira como esses processos foram recebidos pela opinião pública. Ora, numa altura em que ainda se discutem os limites do humor e da liberdade de expressão e em que algumas das pessoas processadas até defendem a existência desses limites e fazem a apologia do “meteu-se a jeito” quando os processos vão para outros, espanta-me que agora achem descabido alguém que se sentiu ofendido usar os mecanismos legais que tem à sua disposição para se manifestar descontente. Convém que se decidam, meus queridos, ou há leis para toda a gente ou não há para ninguém. Se o Goucha pode processar um programa de comédia porque foi nomeado para “Apresentadora do Ano”, o Moura também pode processar quem o nomeia misógino, machista e afins. A diferença é que o Goucha não é uma mulher, já o Neto… bom, não me parece que tenham dito ali alguma mentira, de facto. O problema é que o Goucha perdeu, e bem, o seu processo, já os processos do Neto de Moura vão ser julgados, muito provavelmente, por colegas e amigos seus. Ora, num país que cultiva o corporativismo e o “não vou criticar o meu colega pois não é de bom tom mesmo que ele tenha assassinado 20 pessoas e tenha saudades do Rui Vitória” (onde, inclusivamente, muito dos processados fazem o mesmo, desculpando comportamentos (bastante) errados de amigos e colegas porque, lá está, são amigos e colegas), isto é capaz de dar uma ou outra condenação só porque sim. E isso é que devia irritar e preocupar a malta. Vá, isso e as 12 mulheres mortas desde Janeiro cujos assassinos são capazes de conseguir ir à festa no Marquês, em Maio, caso lhes calhe um Neto na tribuna. E pelos vistos há muitos.

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