José Régio, um dos nomes mais sonantes da cultura portuguesa

por Lucas Brandão,    17 Setembro, 2016
José Régio, um dos nomes mais sonantes da cultura portuguesa
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José Régio notabilizou-se como um dos nomes sonantes da cultura portuguesa do século XX. Para além de autor e poeta, compôs peças, contos, ensaios, crónicas, esporádicas pinturas e possuiu a sua própria coleção de arte, especialmente de tipos sacra e popular. De gema vilacondense, afirmou-se com celeridade como um dos nomes preponderantes desta cidade marítima, cuja biblioteca e escola secundária possuem o seu desígnio. Com fragrância de maresia, eis Régio como resultado do seu privilégio.

José Maria dos Reis Pereira nasceu em Vila do Conde a 17 de setembro de 1901, fruto de um casal burguês típico da província. No seio da sua família, teria quatro irmãos, entre eles três artistas, notabilizando-se o também poeta e engenheiro Júlio Maria dos Reis Pereira. A cidade que vê o Ave desaguar teve em si fisicamente José Régio até ao quinto ano de liceu deste. Até lá, ia produzindo as suas primeiras composições poéticas nos periódicos locais “A República” e “O Democrático”, periódicos esses orientados pelo tio-padrinho do autor.

Após uma breve passagem por um internato portuense, partiu para a vida académica coimbrã, licenciando-se em Filologia Românica e defendendo em tese as correntes e individualidades na poesia moderna lusa. Em si, mencionou e escrutinou os trabalhos de Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e de Fernando Pessoa. Quando estes emergiram e se consolidaram no contexto de então, a tese foi publicada com o título “Pequena história da moderna poesia portuguesa” (1941), alturas em que já se havia afirmado como adepto desta poesia mais ativa e disruptiva em relação às tradições instituídas. Com a graduação concluída, Régio passou a lecionar o Português e o Francês até 1928 na cidade do Porto e desde então em Portalegre, exercendo lá ensino durante três décadas e meia, retirando-se profissionalmente em 1962. A cidade alentejana tornou-se assim crucial na maturação pessoal e criativa do nortenho, que retornaria a Vila do Conde em 1966.

Foi de forma paralela que a sua vida artística assumiria uma veia bastante saliente na circulação de Régio pelo corpo geográfico lusitano. As suas avulsas colaborações continuaram a ser efetuadas em Coimbra, essencialmente nas publicações Bysancio e Tríptico. Para além destas, e ao lado do também polímata Branquinho da Fonseca e do autor João Gaspar Simões, fundou a revista literária modernista Presença, em tempos académicos nos quais interagia no Café Central da cidade. Eventualmente, tornou-se o único responsável pela produção e direção da mesma, esta que advogava a liberdade e a vivacidade da literatura, em oposição aos cânones do academismo e do conservadorismo vigentes. Tomando como bases e como inspiração a geração da revista Orpheu, distinguiu-se esta como a segunda vaga do modernismo português. Para além deste irregular mas duradouro projeto (foi publicada durante treze anos), colaborou em órgãos preponderantes na comunicação social e cultural do país, tais como o “Seara Nova”, o “Comércio do Porto”, o “Diário de Notícias” e o “Mundo Literário”. Porém, não abdicou das suas habituais tertúlias, reunindo algumas na cidade alentejana onde trabalhou e contando com ilustres passagens de nomes como David Mourão-Ferreira ou Eugénio Lisboa.

“Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. (…) A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe.”

Excerto de “Literatura Viva”, manifesto publicado pelo trio fundador da revista Presença.

Por estilo, José Régio regeu-se por uma afincada reflexão quanto à dualidade Homem-Deus, procurando respostas para o conflito que os envolvia com a sociedade e o artista, para além do Eu e dos outros. Era desta forma que o autor conferia vida e personalidade aos seus escritos, imbuindo-os de caráter próprio e de uma transparência fiel ao sentido humano. Assim, tanto na prosa (“O Jogo da Cabra Cega”, de 1934) como na poesia (“Poemas de Deus e do Diabo”, datada de 1925), o vilacondense pescou num vasto ecossistema de ideias, de valores e de questões. Também o teatro caminhava neste diálogo com incidência no interior, tentando desbravar aquilo que o espírito guardava a sete chaves. Como obras denotadas neste género, destacam-se “Benilde ou a Virgem-Mãe” (1947, adaptada cinematograficamente por Manoel de Oliveira), “El-Rei Sebastião” (1949), “A Salvação do Mundo” (1954) e “O Meu Caso ou Mário ou Eu-Próprio – O Outro” (1957). A continuidade expressa por estas obras evidencia-se nas problemáticas discutidas e na tensão dramática incutida nestas. As respostas obtidas geralmente revelavam alguma incerteza, não descartando nenhuma componente do seu estudo em arte e radicando numa profunda ambiguidade. A sua faceta mais institucional e formal notava-se na forma como abordava esta problemática, entrando também pela solidão com um tom mais místico e intimista. Era desta forma, tanto optando por ficcionar como por ser fiel à dor que sentia relativamente à solidão humana, que efetuava uma fiel auto-análise ao seu estado de ser e de sentir, valorizando a dor no papel criativo e artístico.

“Penso eu que a literatura pode responder a interrogações, pode tentar responder-lhes, pode simplesmente pô-las e pode nem sequer pô-las. Há a contar com a variedade dos temperamentos literários. Coisa difícil, sei-o por experiência própria, embora deva estar na base de qualquer atitude crítica. Aceitemos, porém, que toda a grande literatura põe interrogações, e lhes procura resposta. Pergunto: Não poderá admitir-se que seja antes às interrogações eternas do homem eterno que a literatura procura responder? Não envelhecerá uma obra de arte precisamente na medida em que só responde às inquietações de uma época? E não perdurará na medida em que, através, ou não, de respostas provisórias a interrogações provisórias, sugere uma resposta eterna a interrogações eternas, exprime inquietações eternas embora de forma pessoal?”

José Régio in ‘Presença, Folha de Arte e Crítica, 1927-1940’

Optando por divergir do conservadorismo ideológico de então, o docente assumiu-se como socialista cristão, possuindo uma postura regulada mas ativa na vida pública. Porém, não deixou de se opor à diversidade de movimentos e de correntes emergentes, arreigando a sua visão a uma arte pela vida, em que a tónica sobressairia na expressão das emoções do artista, passando pelos dilemas morais e pelo individualismo. José Régio notabilizou-se, assim, por passar ao lado de programas políticos, não obstante passar a ser visto de lado por alguns quadrantes mais reativos e proativos.

Outras colaborações artísticas que foi efetuando contaram com a presença de ilustradores para as suas obras, contando com artistas como Bernardo Marques ou Stuart Carvalhais. Atento ao surgimento da sétima arte, assessorou Manoel de Oliveira nos seus incipientes trabalhos, tanto baseando como auxiliando em plena concetualização. Na música, Amália Rodrigues adaptaria “Fado português” (1965), poema composto pelo nortenho. Seria também nessa década que receberia o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores (1963) pela obra “Há mais mundos”.

Para além da sua tendência descritiva, analítica e expositiva, também cultivou práticas de colecionador, desenvolvendo um micronegócio de comércio e restauro de antiguidades. Ainda no Alentejo, compilou uma vasta e rica coleção de antiguidades e de arte sacra, vendendo-a ao município da cidade em troca da sua pensão se tornar casa-museu. Também em Vila do Conde deixou um acervo extenso com peças similares às que reuniu mais a sul mas aliando a estas outras de arte popular, entre estas louças, esculturas e pinturas.

Em tempos de desfrutar da sua ensejada reforma, convocou com a rotina protocolar um outro tipo de tertúlias, desta feita tanto no restaurante Marisqueira em A-Ver-O-Mar como no Diana-Bar da vizinha Póvoa de Varzim. Consigo, trouxe a escritora Agustina Bessa-Luís, o cineasta Manoel de Oliveira, o professor Luís Amaro de Oliveira, entre outros. Consequência do seu tabagismo que se arrastava desde cedo, viu o coração traí-lo aos 68 anos a 22 de dezembro de 1969. Partiu na cidade que o viu nascer, na cidade por onde passa o rio Ave que tanto lhe alimentou a criatividade e o sentido apurado para analisar a sua realidade. Apesar de nunca se casar, não se coibiu em ocasião de expressar o seu amor pela vida e pela equação desta com uma mão cheia de incógnitas, entre elas eventuais casos amorosos que possuiu. Foi desta forma singular e peculiar que se apresentou José Régio, homem de lugares físicos e íntimos, autor de sentimentos reais e surreais, figura de povoação e de nação.

Soneto de amor

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma… Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas…
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua…, — unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois… — abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada…
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!

José Régio, in “Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, Eugénio de Andrade”

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