Isabel Meyrelles, a primeira surrealista portuguesa

por Augusto António Cabrita,    4 Junho, 2021
Isabel Meyrelles, a primeira surrealista portuguesa
Ilustração de Mariana Dimas / CCA (@marianaalwaysknew)
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Isabel Meyrelles (Matosinhos, 1929) é uma escultora e poetisa portuguesa associada ao movimento surrealista. Iniciou os seus estudos em escultura, no Porto, com apenas 16 anos, mas depressa se mudou para a capital, interessada pelo mundo das tertúlias e dos cafés. Em Lisboa, privou de perto com nomes como Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas ou Alexandre O’Neill, apesar de, oficialmente, nunca ter pertencido nem ao Grupo Surrealista Português, nem ao posterior grupo dissidente Os Surrealistas (a inacessibilidade das mulheres era uma realidade).

Autora de cinco obras poéticas publicadas, “Em voz Baixa” (1951), “Palavras Noturnas” (1954), o “Rosto Deserto” (1966), O “Livro do Tigre” (1976), e o “Mensageiro do Sonhos” (2004), é, ainda, autora de dezenas de obras escultóricas que foram sendo expostas ao longo da sua vida entre Portugal e França. É para este último país que parte em 1950, agastada pela realidade macerante e opressora do Estado Novo, tendo, no seguimento, estudado Escultura na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts e Literatura e Belas Artes na Universidade Sorbonne.

Em 1952, matricula-se na Grande-Chaumière para estudar Escultura com o mestre Ossip Zadkine. Em Paris, conhece nomes como Tristan Tzara, poeta franco-romeno e um dos pioneiros do dadaísmo — figura determinante na sua assunção enquanto surrealista —, Philippe Soupault, Sarane Alexandrian, José Pierre ou Henri Michaux. Intercalando períodos da sua vida entre Portugal e França, funda em 1971, com Natália Correia, o famoso café Botequim, onde, durante vários anos, se juntam diversos pensadores portugueses.

Nas suas duas primeiras obras (ambas publicadas na década de 50), a temática do amor, a brevidade dos escritos, e o tom confessional dos mesmos, são características bem patentes.

“Libertei os demónios,
é inútil que se escondam
atrás da fonte cor-de-rosa
do Jardim das Delícias,
sei que estão lá,
de nada serve atravessar
este mar encristado de cavalos selvagens,
a praia terá dentes
e dedos de enxofre e de sal,
as armadilhas-para-sonhos já levantam
as cabeças de arestas petrificadas
e o tempo, o tempo, esse,
penteia os seus cabelos de areia negra
e alimenta-se do meu desejo de ti.”

Em “Rosto Deserto” (1966) — originalmente publicado em francês e traduzido para português por Natália Correia —, dá-se uma mutação das representações poéticas, surgindo, segundo a autora, uma fase de maior maturidade autoral, onde meditações sobre o ofício da escrita, o estatuto do poeta e os intervalos da palavra e do seu poder florescem. Com a obra enunciada, surge, igualmente, uma progressiva inclusão de figuras mitológicas (que acompanharão grande parte da sua obra escultórica), de personagens tradicionais da literatura clássica, mas também uma crescente narratização das suas poesias.

Em “Mensageiro de Sonhos” (2004), inserido na sua última compilação publicada (a antologia “Poesia”), vigora um registo elegíaco, longe da dimensão sarcástica e até, por vezes, humorística que se fez igualmente notar ao longo dos seus trabalhos. A obra homenageia, através de alusões, autores como Jorge Luís Borges, Robert Desnos, Victor Hugo, Madame Yvonne Paoli, mas também Inês Guerreiro, sua irmã, e o seu irmão João. “Mensageiro de Sonhos”, que alude ao papel do poeta através do seu título, é igualmente como que um fechar de cortina no campus poético por parte da autora.

Paris em 1950

para Robert Desnos

“Pequeno pequeno pequeno
ronronava a formiga de dezoito metros
aproximando-se dissimuladamente do Leão de Belfort
mas este fez orelhas moucas,
ele era não apenas de bronze
mas também cartesiano
e dizia para consigo que uma formiga de dezoito metros
não existe
não existe…
No que ele se enganava redondamente
o poeta a criou,
logo ela existe. Q.E.D.
Esteve ultimamente na Praça Denfer-Rochereau?”

Mas se Isabel Meyrelles se catapultou a partir da sua poesia, não menos o fez através da sua escultura. Pelo contrário. A autora — que sempre destacou o seu percurso escultórico face ao poético — contou ao “Mil Folhas” do Público, em 2004, que “os seus poemas sempre foram de circunstância”, mas que a escultura nunca o foi. “A poeta é. Aparece em determinadas épocas, por um determinado tempo, mas depois desaparece outra vez, durante muitos anos.” No caso da escultura, a artista procurou quase sempre a transmutação de várias representações, com especial destaque para figuras mitológicas, partes do corpo humano e objetos do quotidiano. Existe, pois, uma diluição do canónico, do usual em surreal, em poética simbólica, meta-realista, sem que, no entanto, as simbologias associadas a determinadas representações se desvinculem por completo das suas estruturas originais de significação.

“Licorne” (2003), esculpida em bronze

Quando Fritzi (como era carinhosamente apelidada pelos amigos de Lisboa) esculpe figuras como o dragão, o unicórnio, ou o gato — figuras etimologicamente associadas ao imaginário oriental, ocidental e egípcio, respectivamente — promove uma dupla transmutação, fundando uma poética através do próprio mito colectivo, que já por si é uma transmutação en soi. De resto, as suas esculturas geram frequentemente perplexidade no espectador, convocando-o, em primeira instância, para uma geografia de destruturação, para depois o conduzir ao questionamento e a uma eventual reconfiguração das suas próprias perspectivas representacionais, significantes e até criativas.

Nos seus trabalhos escultóricos, há ainda uma simplicidade anti-entrópica (do ponto de vista da representação), geralmente diluída em dois, três segmentos que comumente divergem para ao mesmo tempo convergirem, abalando as estruturas quotidianas e reconfigurando de forma desprendida e independente os limites da linguagem e da própria arte.

“O Leão Místico” (2006), esculpida em terracota

Para além de escultora e poeta, Isabel Meyrelles foi também tradutora. Traduziu autores como Jorge Amado, José Régio, Mário Cesariny, Vitorino Nemésio ou Maria Gabriela Llansol para o francês. Exerceu como tradutora para o Instituto de Cinema Português e para o Ministério da Cultura.

Esteve, também, associada à área da ficção científica e ao espectro da fantasia, dimensões paralelas a alguns segmentos da sua obra. Editou textos e organizou mostras em torno da área. Foi igualmente um dos membros fundadores do Comité Europeu de Ficção Científica, como representante de Portugal. Em 2009, foi condecorada com o grau de comendador(a) da Ordem Militar de Sant’Iago de Espada.

A sua mais recente exposição, “Como a sombra a vida foge”, teve lugar em Novembro de 2019 na Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão. Cerca de oitenta esculturas da autora foram exibidas, num evento onde se encontrou, pela última vez, com o seu amigo Artur do Cruzeiro Seixas.

Isabel Meyrelles é a única artista portuguesa que se define única e exclusivamente como surrealista.

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