Intervenção para o Presidente da República sobre a Saúde em Portugal

por Gustavo Carona,    28 Novembro, 2020
Intervenção para o Presidente da República sobre a Saúde em Portugal
Gustavo Carona / DR
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Sou médico e dedico-me ao SNS desde há cerca de 15 anos. Confesso que a minha ambição é, sobretudo, ser bom médico, bom clínico. E nunca dediquei grande esforço a reflectir sobre matérias de organização, administração e muito menos política na saúde. Tenho zero experiência do backstage da medicina e da saúde em Portugal. Sou esse tipo de médico. Como tal vou partilhar algumas reflexões que nascem a partir da minha experiência hospitalar.

A concorrência para entrar na Fac. de Medicina é feroz. Dedicação e trabalho árduo logo na adolescência. Tenho amigos de todas as áreas e não via ninguém a estudar, o que eu tinha de estudar. “Não posso, tenho que estudar” foi a frase que dominou a minha vida, alimentado pelo sonho de um dia vir a salvar vidas. O acesso à especialidade foi 1 ano a estudar, 1 ano. Cruzando várias vezes os limites da loucura e da exaustão.

Durante a especialidade de Anestesia trabalhei e estudei como nunca. E ao contrário do que se pensa gastei uma fortuna na minha formação. Entre cursos e congressos em ~5 anos gastei entre 15-20 mil euros, apenas porque queria ser bom médico. E também por isso perdi a conta às vezes que trabalhei 36 horas seguidas, e por 2 vezes trabalhei 48 horas seguidas. Fi-lo porque queria juntar dinheiro para a minha formação, porque queria crescer em várias áreas da medicina e porque era preciso. Pelo sentido de dever. Depois mais uma exame de fim de especialidade.

De seguida fiz a sub-especialidade de Cuidados Intensivos, mais 3 anos de trabalho e estudo e mais um exame exigente. Sou mais completo, mas ganho o mesmo.
A vida nos Cuidados Intensivos é dura. E é isso que eu faço há 10 anos, excepto quando vou em missão onde trabalho como Anestesista, porque os Cuidados Intensivos só existem na medicina dos ricos, nos países pobres, os que deles precisam, morrem. E é a partir dos Cuidados Intensivos, a partir do ponto mais distante entre a vida e a morte, que eu vejo a Medicina, que eu vejo o Serviço Nacional de Saúde. Ver pessoas a morrer todos os dias é muito duro, mas infinatamente mais destructivo é decidir quem vai morrer.

Decisões que têm de ser tomadas, mas que corroem por dentro e assombra para sempre quem as toma. E fazemos tudo cara-a-cara. Ninguém imagina a dor de olhar nos olhos um familiar e anunciar que decidimos não tratar, decidimos deixar morrer aquela pessoa.

E porque é que não tratamos alguém? 1º porque não há tudo para todos. As vidas custam dinheiro e este é finito. Tentar salvar uma vida nos Cuidados Intensivos custa milhares de euros, se a pessoa morrer é dinheiro no lixo, e é dinheiro que fica a faltar para comparticipar medicamentos simples e educação para a saúde que salva vidas. Há que fazer o máximo pelo maior número de pessoas. Não há tudo para todos. 2º esta questão é bem mais complexa e filosófica, é a futilidade do tratamento. Ter a presunção de pensar não só na vida, mas também na qualidade de vida. Até onde é que salvar uma vida não é prolongar o sofrimento?

O problema é que estamos a educar as pessoas com a certeza que vão viver 80 ou 90 anos. Mas não é verdade. Não é verdade para todos, muitos vão enganar a estatística. Temos que educar as pessoas para valorizar a vida, mas aceitar a morte.

“Não posso, tenho que trabalhar, estou de Urgência (ou de Banco” é a frase que mais uso nos meus círculos sociais. Fins de semana, feriados, natais, os meus anos ou os da minha mãe. Trabalho 24 hrs sob stress, ninguém imagina a exigência física e psicológica de se receber um doente grave às 3 ou às 4 da manhã, depois de 20 horas de trabalho e ter que manter a cabeça fria e a destreza de mãos. Descansamos umas horas e trabalhamos no dia a seguir. Um piloto de avião faz um voo de 8 horas e descansa 3 dias. Do erro de um piloto quase ninguém morre. Do erro médico morrem em Portugal centenas de aviões cheios por ano.

É a profissão onde há mais burnout e normalmente são os bons que estouram. As boas pessoas, os bons médicos, os que trabalham por amor à camisola. E além do prejuízo enorme para a própria pessoa, há todo um mundo de saberes que deixa de ser aplicado em prol dos doentes.
Confesso também que é uma dor de alma, principalmente nestes meses do ano, ver as urgências a transbordar com pessoas desesperadas e doentes sem fim a dormir dias no Serviço de Urgência.

Tenho uma admiração profunda por médicos que trabalham por amor à camisola, e mais ainda por tantos outros grupos de profissionais de saúde que colhem menos loures que os médicos, em particular os enfermeiros. Os enfermeiros têm sido desprezados pelo seu país, e são fulcrais na arte de aliviar o sofrimento e salvar vidas.

O problema do SNS é a cultura da podridão do funcionalismo público. Até quando é que ser bom ou mau vai ser igual? Até quando é que o sistema aguenta sem meritocracia? Médicos, Enfermeiros, Técnicos, Administrativos, etc, é demasiada gente interligada e interdependente, em que basta um pensar “se eu trabalhar mais ganho o mesmo” para bloquear todo o sistema.
Porquê ser bom médico? Ganho o mesmo. E isto é verdade para polícias, professores, camaras, finanças, etc, etc… Não há cultura de mérito, e não há obrigatoriedade de formação contínua, nem de avaliações seriadas. E como tal as pessoas acomodam-se e esquecem-se dos conhecimentos científicos que salvam vidas.

A perversão dos privados. Onde se deixa de ser doente e se passa a ser cliente. E os clientes exigem. Exigem um sorinho para uma constipação, um antibiótico para um arranhão e uma TAC cerebral para uma dor de cabeça após uma noite de copos. E como é um negócio, não tem mal vender a mais. Até há estímulos para atitudes em prol do negócio e a desfavor dos doentes, ou dos clientes. Por exemplo, a má gestão de antibióticos é “só” o maior problema de saúde pública do planeta.

Por vezes recebemos doentes nos Cuidados Intensivos vindos dos privados. Ou porque não lhes apetece, ou porque não têm capacidade para mais, ou porque o plafond do seguro chegou ao fim, mas o tratamento não. Quem é que quer viver num país assim? Quem é que quer viver com uma medicina assim? Eu acho que a revolta das pessoas seja porque motivo for, não vem da escassez, vem da desigualdade!
Não quero transparecer uma visão fatalista, porque não é o caso. Em Portugal pratica-se uma medicina excelente, e eu tenho orgulho enorme no SNS. É sem dúvida das coisas mais bonitas que temos em Portugal e que faz de nós um bom país. Saúde igual para todos. É inspirador.

Mas para isso é preciso que se reforce vários prismas do sistema:
– Uma divisão realista e não demagógica dos recursos.
– Educar para a saúde, para a vida, para a qualidade de vida, mas também para a aceitação da morte.
– Não deixar que a medicina seja um negócio. É perverso. É desumano.
– Atacar o cancro do funcionalismo público e aplicar uma cultura de mérito e de formação contínua.
– Proteger as pessoas. Os recursos humanos são a maior riqueza no tratamento a qualquer doente. É preciso cuidar das pessoas que cuidam de pessoas.

Porque enquanto a vida humano for o bem mais precioso, a medicina será sempre a mais bonita das ciências!”

Fiz esta partilha de pensamentos ao Presidente da República, nos moldes de uma refelexão sobre o futuro de Portugal. Isto foi escrito e dito pré-pandemia, mas acho que nunca foi tão verdade. Pelo bem-comum, foi sempre e será sempre a linha directriz das minhas palavras que vêm invariavelmente do meu coração!

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