In Media Res #6 – O terror, agora, vive perto

por Ricardo Couto,    4 Junho, 2017
In Media Res #6 – O terror, agora, vive perto
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In media res é um espaço de ensaio a partir de elementos culturais. Reflexões desprovidas da lógica cronológica. O privilégio da ordem das nossas coisas. Sem pretensão avaliativa ou necessidade de aferição científica. Comprometida, somente, com a turva impressão pessoal do mundo das coisas. In media res porque todos surgimos no meio da História.

Está perto. Quando foi Bruxelas, o meu pai, numa fila qualquer repetida todos os dias, soube, ao ouvir uma mãe acalmar a filha emigrante pelo telemóvel, que houve um atentado. Eu, no rotineiro gesto de abrir o Facebook, recebo a atualização de segurança de amigos meus a viver em Londres. Afligiu-me, ainda, a proximidade de parte da minha família aos horrores de Paris.

Agora é assim. Demasiado perto. Sempre que o oráculo negro lança, na TV, a última nova de uma ação que arrepia pela concentração das sensações de incredulidade e estranha repetição, só espero que, desta vez, não seja perto demais. Não quero que bata à minha porta ou às portas onde tanto gosto de bater. Quero esse bicho longe dos meus. Penso que este seja o único egoísmo a que temos direito.

Fiquei, pela tarde, absorto diante a caótica catadupa de informação entre a televisão e o computador. Na televisão, o comentador alerta para as consequências económicas do encerramento de algumas infraestruturas europeias. Nas redes sociais, a escala da inutilidade sobe-se de forma vertiginosa. Pouco me espantam os acéfalos. A virtude da ignorância sempre andou indexada ao tempo dos seres humanos neste planeta. Já me habituei à desmesurada imbecilidade do racismo e da xenofobia. Se se mostram em quaisquer notícias banais, seria expectável que se escondessem num grande evento? Claro que não. É o território perfeito para o seu apelo de ódio. Se veem trampa, querem Trump. É simplista a sua lógica. Se é que têm uma.

Assustam-me, sim, os laivos analíticos e explicativos. Há um prazer quase sádico no anúncio de uma inevitabilidade. Uma retórica cuja argumentação se estrutura na denúncia da suposta hipocrisia ocidental e em que o (falso) moralismo inebria a raíz do pensamento “puseram-se a jeito”. Ninguém se pôs a jeito de nada pelo simples facto de haver nada que explique o que estas pessoas levam a cabo. Seja em Paris ou em Damasco. É isso que me magoa num sítio de mim que não sei bem qual é. É ver que, diante do sofrimento do outro, tudo o quanto se ergue é uma tentativa de vitória argumentativa.

Isso é o mal de todo esse pensamento. Legitimar, por um minuto que seja, este ato. Mesmo condenando-o moralmente. Não me livro desta sensação de que estão a ganhar. É uma espiral que me consome. O oráculo. A consternação. A lamentação e, com isso, a espiral inútil da troca de acusações de hipocrisia. Sempre a mesma coisa: ou porque as bandeiras no Facebook são uma fachada ou porque eu é que sei porque senti na pele.

Em minutos, as conversas são sobre tudo menos sobre as pessoas que morreram. Em rápidos momentos, some a sensibilidade pelo sofrimento do outro. Some, diluída na estupidez, a humanidade. Esvai-se a empatia pelos outros que viram as suas portas arrombadas. Ganham-nos se já nem honramos as nossas sepulturas. A morte de um ser humano livre empobrece o mundo de um vivo homem livre pelo simples facto de, agora, sermos menos a segurar o espectro da liberdade.

O medo está muito perto. Mas, ainda mais perto, a liberdade. Não celebramos uma viagem de metro, um concerto, um almoço no café ou uma conversa num sítio qualquer. Não celebramos o que vive, impregnado, em nós. A liberdade é a nossa identidade. Repare-se no quanto nos parece injusto uma morte de alguém que passeia na rua. Não parece fazer sentido morrer em tão corriqueiro ato. Não faz. Que sirva, ao menos, para ver o quanto alojada em nós está a liberdade. É ela o nosso corriqueiro fundamento. Que fique, então, por perto. Bem perto.

(Foto: Stefan Wermuth/Reuters)

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